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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O debate eleitoral deve ser pautado por enlutados e sobreviventes da covid

Familiares visitam parentes, pela primeira vez, no Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, na manhã do Dia de Finados, para prestar homenagens para os parentes que faleceram por causa de complicações da covid-19. - Sandro Pereira/Folhapress
Familiares visitam parentes, pela primeira vez, no Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, na manhã do Dia de Finados, para prestar homenagens para os parentes que faleceram por causa de complicações da covid-19. Imagem: Sandro Pereira/Folhapress

Karolina Bergamo*

31/07/2022 06h00

Estamos às vésperas de mais uma eleição em contexto pandêmico. E novamente (ou ainda) quase não se fala sobre pandemia. Muito pelo contrário. Declara-se o fim da emergência sanitária. Pede-se o arquivamento das poucas e escassas ações de investigação da má conduta e irresponsabilidade do governo federal na crise.

Não podemos permitir que mais uma eleição passe sem que a realidade esteja presente no debate. Inclusive, porque para uma parcela significativa da população ignorar é, simplesmente, impossível. Eu, pessoalmente, sou uma dessas milhões de brasileiras que teve a vida virada do avesso do dia pra noite.

Faz um ano e quatro meses que eu perdi meu pai e me tornei uma enlutada pela covid-19. De lá pra cá, sinto que uma parte considerável da minha energia foi gasta tentando explicar pra Deus e o mundo, com palavras e ações, o que essa perda significa. E logo nos primeiros meses de luto, percebi que eu não estava sozinha nessa tarefa.

Assim, me juntei com o Nossas para pensar em como potencializar a atuação de pessoas como eu. E nos últimos 4 meses, um grupo de 10 enlutados do Brasil inteiro topou se juntar para aprender sobre ferramentas de incidência política, ativismo e mobilização.

E é deles a autoria de uma carta-aberta aos candidatos nesta eleição. Uma chamada de atenção, seguida de sugestões de ações concretas que precisam ser tomadas pelo poder público.

É hora de falar sobre e levar em consideração as demandas dos que precisam.

Leia a seguir, a íntegra da carta:

"Caros candidatos e candidatas,

Esta é uma carta aberta escrita por brasileiros e brasileiras que perderam entes queridos para a pandemia de coronavírus.

Para muitas pessoas o pior 'já passou'. Para nós, não vai passar nunca mais.

Somos cerca de 7 milhões de enlutados pela covid-19. Somos mães, pais, esposas, maridos, filhas, filhos, irmãs, irmãos, amigas, amigos, familiares, colegas de trabalho etc. que perderam amores para o vírus.

Repudiamos a maneira com que a pandemia foi conduzida no país. E não podemos deixar que nossos mortos sejam esquecidos. Ou que tantos outros continuem morrendo diariamente!

Mas mais do que isso. Não podemos deixar que nós, que sobrevivemos, sejamos esquecidos.

Somos eleitores e eleitoras que precisam ter suas necessidades levadas em consideração. E demandamos que o Estado brasileiro passe a respeitar o povo e os enlutados da covid-19 através de ações, leis, políticas públicas e programas econômicos e sociais.

O Brasil precisa amadurecer. Precisamos de coragem para olhar para as necessidades de quem ficou. O mundo não é e não será mais o mesmo. Nosso dia a dia foi profundamente transformado. Muitos de nós, para além das perdas afetivas e pessoais, perdemos nossa saúde física e mental, nossos trabalhos, nossos sustentos, nossas moradias e apoio social. Inclusive, muitos de nós faz parte dos 33 milhões de brasileiros que passam fome!

Somos representantes da urgente necessidade de criarmos novas formas de coexistir no mundo. Não está tudo bem. Não existe volta ao normal. E precisamos ser ouvidos e vistos!

Representamos, para boa parte da população, algo que não querem nem chegar perto.
Mas ainda estamos aqui. Continuaremos aqui. Permaneceremos aqui até que vocês nos escutem. Não seremos calados.

Querem nosso voto?

Façam por merecer! Precisarão levar em consideração as necessidades deste grupo que precisam ser urgentemente endereçadas.

Por isso, compartilhamos esta carta com todos os candidatos e candidatas - a deputado estadual e federal, ao senado, aos governos dos Estados e à presidência da república - para propor 13 compromissos e ações concretas que fortalecem os enlutados da Covid-19:

Direitos Humanos

  1. Criação de um memorial nacional em homenagem às vítimas da Covid-19, onde se possa atualizar os nomes dos vitimados, até porque continuam morrendo brasileiros diariamente; algo que nos represente e minimamente dê sentido a nossa dor. E que assuma o compromisso em nunca mais repetir a política de morte durante a pandemia de Covid.

Saúde

  1. Incremento financeiro para Sistema Único de Saúde (preferencialmente com a revogação do limite de teto de gastos), no sentido de conforme o que preconiza a legislação do SUS, as demandas da Covid-19 e Covid Longa possam ser absorvidas pelo serviço sem prejudicar nenhum outro grupo prioritário ou não. Sem que os usuários morram nas filas intermináveis de espera para atendimento e exames. E que esse atendimento seja multidisciplinar com vagas, insumos, equipamentos e recursos humanos suficientes e eficientes para toda a população;
  2. Criação de serviço inserido na política pública de saúde mental para atendimento e apoio aos familiares enlutados pela covid-19, respeitando seus territórios e os diferentes grupos etários a qual pertencem;

Assistência Social

  1. Incremento de recursos ao Sistema Único de Assistência Social (preferencialmente com a revogação do limite de teto de gastos), absorvendo a demanda da população de enlutados e sobreviventes da covid-19 em vulnerabilidade social;
  2. Fortalecimento à política de proteção social a orfandade de crianças e adolescentes, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, em especial aos órfãos da Covid-19;;
  3. Serviço de suporte assistencial às famílias que passaram a cuidar das crianças e adolescentes órfãos pela covid-19
  4. Programa assistencial às viúvas e viúvos enlutados, no qual os cônjuges eram trabalhadores informais;

Trabalho

  1. Criação de programa de geração de renda aos enlutados e sobreviventes da Covid-19 que perderam seus sustentos, e principalmente aqueles que ficaram responsáveis pelos órfãos;
  2. Criação de programa de qualificação profissional às famílias monoparentais, chefiadas por mulheres. Incentivando o fortalecimento de sua condição socioeconômica e dignidade humana;

Educação

  1. Incremento de recursos à política pública de Educação (preferencialmente com a revogação do limite de teto de gastos);
  2. Incremento de recursos e incentivo à Pesquisa Científica e criação de Tecnologia no tema da Covid-19;
  3. Criação de serviço de suporte técnico às crianças e adolescentes familiares de vítimas da covid-19 que estejam com dificuldades de aprendizagem pelo retorno presencial as aulas;
  4. Criação de serviço de suporte técnico às crianças e adolescentes familiares de vítimas da covid-19 que estejam apresentando sofrimento psíquico em relação ao luto;

Assinam esta carta os integrantes da 1ª turma de enlutados da covid-19 do programa de formação de lideranças e ativistas do Nossas.

Alexandre Francisco dos Santos, 49, Rio de Janeiro
Fabiana Carioca, 41, Amazonas
Kunawé Uru Eu Wau Wau, 21, Amazonas
Marcella Centofanti, 43, São Paulo
Mauro Quijada, 44, Mato Grosso do Sul
Paola Falceta da Silva, 47, Rio Grande do Sul
Patricia de Paiva Moreira, 61, Minas Gerais
Roseli Barroso Espíndola Fonseca, 52, Rio de Janeiro
Soraya Da Silva, 41, Rio de Janeiro
Vera Lúcia Aragão, 52, Rio de Janeiro

*Karolina Bergamo, jornalista e gestora de mobilização do Nossas. Enlutada da covid-19 desde abril de 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL