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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quais os desafios no acolhimento da população LGBTQIA+ no campo da saúde?

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Isabela F. Meira

26/06/2022 06h00

Primeiro, ao pensarmos em "população LGBTQIA+", é necessário partirmos do reconhecimento de quanta pluralidade está contida nessa sigla, tendo em vista que cada uma dessas letras está se referindo a comunidades que não são homogêneas, não sendo possível generalizações. Inclusive, porque nessa sigla se mistura gênero e sexualidade, que são questões diferentes.

Segundo, é consenso que a produção de saúde não pode estar desassociada do acolhimento e do respeito, e isso se torna mais relevante ainda ao falarmos de uma diversidade de vivências fora da norma. Esse cuidado é necessário para que o campo da saúde não reproduza preconceitos presentes em outros âmbitos, como família, escola, ambientes de trabalho, e na sociedade em geral.

Historicamente, corpos, experiências e identidades que estavam fora do padrão que foi imposto socialmente foram estigmatizados, estereotipados, discriminados e tratados como doença. Assim, toda pessoa que não fosse hétero, e/ou cisgênera, era vista como alguém que precisaria ser "curada" ou corrigida. Hoje, entende-se que não há cura para o que não é doença, no entanto, muito dessa perspectiva ainda é reproduzida nos dias atuais, gerando muitas violências.

Os serviços de saúde não estão isentos disso. Inclusive por que o campo da saúde foi um dos responsáveis por definir o que seria "normal" e o que não, naturalizando as normatividades. Assim, a medicina, a psiquiatria e a psicologia exerceram um tipo de enquadre social moralista, onde tudo que era diverso ou diferente, foi tratado como doença, como a homossexualidade e a transgeneridade.

Com isso, fomos perdendo a dimensão do quanto a humanidade é diversa. Criamos muitos rótulos que além de tentarem padronizar, criam hierarquias e desigualdades sociais e vão atrofiando nossa capacidade de respeitar as diferenças, a partir dessa determinação do que é "normal ou anormal". Isso vai na contra mão de uma produção de saúde, de cuidado e de acolhimento, que reconhece que as subjetividades humanas são muito mais complexas do que as caixinhas que criamos socialmente para padronizar e controlar os corpos.

Então, não é somente o preconceito que produz violências, mas também a invisibilização. O próprio pressuposto sobre "o normal", "o certo", "o natural", é que deve ser repensado, pois causa um despreparo tanto nos profissionais quanto nas instituições, que se reflete nos protocolos de atendimento, na organização dos serviços, na formação dos profissionais e consequentemente, na falta de acolhimento, o que dificulta e por vezes impede o acesso aos serviços de saúde.

Da forma que os protocolos estão colocados, muitas vezes falta o básico para que se respeite as pessoas trans, por exemplo, até mesmo na parte burocrática, como uma simples ficha de cadastro que por vezes não tem espaço para o nome social. Isso é algo simples de ser resolvido, e extremamente necessário. O respeito ao nome social e o uso correto de quais pronomes a pessoa quer ser tratada tem importância imensurável, e é considerada inclusive uma medida de prevenção ao suicídio. Não respeitar o nome social é uma violência que desconsidera a própria existência da pessoa.

Como reparar esses despreparos que ainda vem sendo reproduzidos?

Por exemplo, se os próprios serviços de saúde são organizados a partir da binariedade posta na "saúde do homem e saúde da mulher".Como se acolhe e recebe quem não é homem, nem é mulher? E ainda assim, dentro desse binário, na saúde da mulher ou do homem, as demandas das mulheres e homens trans estão sendo consideradas tanto quanto das pessoas cis?

O que é tido como "natural", como a cisgeneridade, foi naturalizado em protocolos que institucionalizam a norma. Mesmo a biologia, usada como argumento para naturalizar a binariedade e a cisgeneridade, não dá conta de abarcar a pluralidade existente, que transborda os dualismos. A lógica binária, até no que se refere a genital, esbarra em limites quando consideramos corpos intersexuais, que "são tão comuns quanto ruivos ou gêmeos", mas são tratados como raridades e invisibilizados pela medicina, devido às intervenções cirúrgicas, que são feitas quando a pessoa ainda é bebê, no sentido de normatizar.

Em suma, nem o corpo humano cabe dentro do reducionismo binário, nem identidade de gênero se define por genital. São muitas as revisões necessárias para que o campo da saúde esteja mais alinhado a uma perspectiva que de fato produza cuidado, acolhendo as diferenças dos corpos e vivências.

É importante que profissionais busquem conhecimento e os cursos de formação se atualizem frente às questões de gênero e sexualidade, mas as mudanças precisam ser estruturais e institucionais, através de políticas públicas. Além disso, e antes de tudo, é necessário termos o respeito como parâmetro ético, considerando a diversidade.