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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Apagão da Anvisa envenena o país

Glifosato, agrotóxico - alffoto/iStock
Glifosato, agrotóxico Imagem: alffoto/iStock

Karen Friedrich e Rafael Arantes*

29/05/2022 06h00

Os dados de monitoramento laboratorial, controle da venda e do uso de agrotóxicos no Brasil são cada vez mais escassos. Há 3 anos a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não divulga os resultados sobre a presença de agrotóxicos em alimentos.

O último relatório da Agência (referente a coletas ocorridas em 2017 e 2018) apontou que em média 1% dos alimentos que consumimos podem levar a sintomas imediatos de intoxicação por conta da presença de agrotóxicos. Considerando que todos deveriam ter o direito de realizar ao menos três refeições ao dia, significaria que pelo menos uma vez por mês temos a chance de adoecer por conta dos venenos que comemos. Apesar de já ser assustador, esse valor não está considerando os efeitos das interações do que está presente nos alimentos, nem ao desencadeamento de doenças crônicas, aquelas que se manifestam a longo prazo.

Somados aos já conhecidos resíduos de agrotóxicos em alimentos in natura e até mesmo na água, testes recentes e inéditos feitos pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) detectaram agrotóxicos em 59% dos 27 ultraprocessados testados. Nos alimentos, tanto in natura quanto industrializados, destaca-se, entre outros, a presença do fungicida carbendazim. Ele foi detectado, por exemplo, eu uma das amostras de cereal matinal Nestlé Nesfit e em uma bisnaguinha da Seven Boys. Produtos comumente consumidos por crianças e adolescentes.

Em abril deste ano, a Anvisa suspendeu o processo de revisão dos efeitos sobre a saúde do carbendazim, em curso desde 2019, apesar da área técnica indicar a sua proibição por conta do potencial de causar câncer, problemas reprodutivos e no desenvolvimento humano. Ao apresentar o relatório toxicológico, a diretora da agência, Cristiane Jourdan, destacou de forma contundente a importância do banimento considerando as questões de saúde à luz da missão da Anvisa, mas mesmo assim, dois diretores solicitaram vistas e mais informações ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que já havia sido consultado previamente.

O carbendazim possui registro no Brasil desde 1985, mas já é proibido em 28 dos 37 países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico): Japão, Islândia, Noruega, Suíça, Turquia e toda a comunidade europeia. Por isso, fica claro porque as grandes fabricantes têm interesse e atuam sistematicamente para manter esses produtos no mercado brasileiro, um dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos.

Atualmente, 81% dos agrotóxicos autorizados no Brasil são proibidos em pelo menos 3 países da OCDE por estarem associados a doenças, contaminação ambiental e extermínio de espécies como abelhas e pássaros. Nesse cenário, 54% do que consumimos é de produtos proibidos em países da Organização, China ou Índia. 67% também é de venenos associados a câncer e problemas hormonais ou reprodutivos. E parte expressiva dos mais de 1600 produtos liberados nos últimos três anos são proibidos em outros países.

Criada pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro 1999, a Anvisa tem por finalidade institucional "promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados?"

Nem mais nem menos, conclamamos para que a Anvisa faça cumprir a sua finalidade em promover e proteger a saúde da população. Para tanto, o monitoramento contínuo sobre a presença de agrotóxicos nos alimentos que estamos comendo é fundamental. Assim como o banimento de substâncias comprovadamente prejudiciais.

*Karen Friedrich é biomédica, toxicologista, mestre e doutora em Saúde Pública. Servidora pública da Fiocruz, professora Unirio e membro do Grupo Temático Saúde e Ambiente Abrasco.

Rafael Arantes é coordenador do Programa de Consumo Sustentável do Idec. Mestrando em Nutrição em Saúde Pública (FSP/USP).