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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Uma travesti anti-heroína. Pode isso, Arnaldo?

Viola Davis como Annalise Keating em How To Get Away With Muder: será que conseguimos imaginar uma travesti negra, anti-heroína, com uma jornada rica como a de Annalise? - Reprodução
Viola Davis como Annalise Keating em How To Get Away With Muder: será que conseguimos imaginar uma travesti negra, anti-heroína, com uma jornada rica como a de Annalise? Imagem: Reprodução
Jhonnã Bao

17/04/2022 06h00

Quando eu era criança amava histórias sobre detetives. Gastava horas lendo os livros da Agatha Christie, me imaginando naqueles casos misteriosos, investigando pista por pista, como uma espécie de mini Poirot (a personagem detetive mais famosa da autora). Depois fui crescendo e me apegando aos filmes e séries dos gêneros romance policial e investigação criminal.

Hoje em dia, uma das minhas séries favoritas é How To Get Away With Murder (Como Defender Um Assassino). E não só pela abordagem investigativa, mas também pela potência da personagem Annalise Keating, brilhantemente interpretada por Viola Davis.

Annalise Keating é um presente para a nossa geração de criadores. A própria Viola já disse em entrevista que esta personagem lhe deu a primeira oportunidade, em décadas de carreira, de levar para as telas uma mulher negra cheia de camadas e imprevisibilidades. Annalise Keating é advogada, professora de uma das mais prestigiadas universidades dos Estados Unidos, classe média alta, com inúmeras contradições, com um modus operandi questionável, e que também toma inúmeras decisões equivocadas. Uma exímia anti-heroína.

Juntamente com uma equipe de roteiristas atentos à importância de propor abordagens que desmontem imagens estereotipadas e reducionistas do que é ser uma mulher negra, Viola nos convida a uma jornada de dores e delícias sobre a vulnerabilidade humana sem romantismo através desta estonteante personagem, ao longo de seis temporadas.

Como atriz, escritora e futura cineasta, sempre que assistia aos episódios eu ficava imaginando: e se Annalise Keating fosse uma travesti negra? Será que estamos preparados para ver uma travesti negra, bem-sucedida, com inúmeras contradições humanas, explorando as suas vulnerabilidades em uma ficção? Será que conseguimos imaginar uma travesti negra, anti-heroína, com uma jornada repleta de reviravoltas, mas uma boa redenção no final, tal qual uma Annalise Keating?

Queremos novas histórias

Precisamos avançar nos debates sobre os estereótipos a que corpos dissidentes são submetidos nas mídias: TV, cinema, streaming. Em pleno 2022, não dá mais para aceitarmos que travestis, pessoas trans, pessoas negras, indígenas, pessoas com deficiência, sejam subrepresentadas nos filmes, programas de TV, reality shows, novelas, séries, que consumimos. E friso a palavra "consumo", porque nós pagamos também, e como consumidores queremos nos ver dignamente nesses produtos.

Chega da repetição dessas histórias que só focam na dor, ou na violência, ou na hipersexualização ou apagamento desses corpos. Ninguém é só isso ou só aquilo. Somos uma somatória de experiências, sentimentos, sensações, afetividades, emoções, memórias, de um monte de coisas. Precisamos de narrativas e abordagens novas.

Enquanto sociedade brasileira, precisamos mudar os nossos imaginários quando pensamos em corpos que fogem do padrão hegemônico. Pois, mesmo a passos lentos, estamos nos movendo de lugar. Em nosso país temos parlamentares, como deputadas estaduais e federais, vereadoras travestis; já tivemos vice-prefeita travesti (Kátia Tapety); temos travesti ganhadora do Teddy Award no Festival Internacional de Berlim, temos cantoras travestis indicadas ao Grammy Latino, empresárias, escritoras, advogadas, professoras, atrizes, roteiristas, cineastas, entre muitos outros ofícios.

Levar para as telas personagens trans e travestis que possam gozar da dádiva da contradição, com jornadas redentoras, sem causar espanto ou confirmação das ideias obsoletas do que é ser trans e travesti, e como nos relacionamos com o mundo, é necessário e consonante com o avanço que almejamos e estamos nos movendo para promover no dia-a-dia, mesmo contra várias estatísticas que apontam para nossa morte.

Mais que sonho, isso é construção de futuro

Sei que parece um sonho ambicioso, pois se ainda é difícil achar travestis heroínas nas telas, imagina anti-heroínas? Mas, a minha criança detetive ainda segue sedenta pela oportunidade de contar e ver histórias em que haja personagens trans e travestis levando as questões que lhes cercam, os seus desejos, falhas, afetos, contrastes para as telas e provocar identificação pelos belos e terríveis matizes do caráter humano, que é o elo comum que nos conecta, para além dos nossos marcadores sociais. E, mais que sonho, eu vejo isso como a construção efetiva de um futuro mais equânime.

Para finalizar, voltando à pergunta do título deste artigo, e entendendo aqui o "Arnaldo" como uma alegoria representativa do sistema estrutural (cis-hétero-branco-patriarcal), a resposta é sim. Não só pode, como deve haver pessoas trans e travestis onde e do jeito que elas quiserem, Arnaldo.

5 séries de investigação que indico:

  • How To Get Away With Murder (Netflix);
  • Bom dia, Verônica (Netflix);
  • Killing Eve (Globoplay);
  • Luther (Prime Video);
  • Dupla Identidade (Globoplay).