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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na Cultura Popular aprendi a gostar de mim, do meu povo e nossas histórias

Camila Reis na infância - Arquivo pessoal
Camila Reis na infância Imagem: Arquivo pessoal
Camila Reis

12/12/2021 06h00

Certa vez ouvi um provérbio africano que dizia algo assim: quando não souber para onde ir, olhe para trás e saiba de onde você vem. A história que venho contar hoje, neste artigo, é parte desse olhar para trás que diariamente refaço na busca de compreender o meu caminhar, e bem sei que este caminhar não é mero ato individual e solitário, pois olhar para trás é ouvir as vozes de meus ancestrais, é sentir o pulso das correntes sanguíneas que embalam o meu coração e que me dão vida.

Me chamo Camila Reis, adoro cantar e contar histórias e faço disso minha moeda de troca, que chamam também de profissão, e a minha causa de ser e estar no mundo. Há nove anos recebi a dádiva da maternidade, e ser mãe me traz uma necessidade ainda maior de concentrar minha atenção na ancestralidade e criar possibilidades de novos caminhos para meus descendentes, onde a ancestralidade esteja cada dia mais presente. Assim como Exu, busco abrir caminhos e inverter esta ordem colonizadora que apaga nossas raízes, e nesse meu caminho deixo histórias contadas, cantadas e até mesmo escritas e é dessas últimas que venho falar aqui e agora.

Eu nasci em uma casa com grande movimentação artística e cultural. Meu pai era ator e minha mãe é cantora, ambos muito envolvidos com produções de atividades e eventos da cultura popular local, e esse local é o Maranhão, mais especificamente na cidade de São Luís. E foi em casa que eu aprendi a amar, valorizar e exaltar esse meu lugar que além de Maranhão é também Brasil. Uma criança que nasce no meio de manifestações culturais já faz daquele lugar a sua brincadeira, ali ela brinca com encenações, danças, músicas, instrumentos etc., assim foi comigo e assim é com as crianças que posteriormente chegaram na minha casa.

As manifestações da cultura popular, também chamadas de brincadeiras ou folguedos, são espaços de diversão e interação tanto para adultos como para crianças. Eu aprendi a cantar brincando, aprendi a dançar brincando e aprendi a contar e inventar histórias brincando e hoje, como mulher em idade adulta, percebo que no meio de tantas brincadeiras é possível aprender muito sobre a vida. É claro que junto a toda essa vivência cultural, frequentei a escola formal e aprendi todo aquele básico de português, matemática, ciências, geografia e história, passando ainda pela escola de música e pela universidade, onde me deparei com antropologia e então comecei a ter consciência de que a cultura popular é a minha grande escola, onde aprendi, antes de tudo, a gostar de mim, do meu povo e de nossas histórias.

A questão é que durante a passagem por escolas formais fui me deparando com a hierarquia do saber, onde meus aprendizados na cultura popular não tinham muito valor e daí nasceu meu primeiro livro, Cantigas Divinas (2015). Entrei aos 13 anos para a escola de música, mas antes disso fui aprendiz de duas mestras: Dona Teté e de Dona Roxa, caixeiras do Divino. Acontece que na escola de música tudo que aprendíamos era com base na música erudita, poucas vezes me deparei com música brasileira e me recordo de pouco ouvir falar sobre a música do nosso lugar, cujo nome estava na sigla da instituição: EMEM - Escola de Música do Maranhão.

A minha inquietação com a maneira como a música era pensada e praticada institucionalmente me afastou diversas vezes da escola, mas nunca da prática musical. Foi assim que nasceu a ideia de escrever, em forma de partituras rítmicas e melódicas, músicas da Festa do Divino e do Cacuriá, a ideia foi premiada pela Fundação Palmares e tive a possibilidade de produzir meu primeiro livro. O tempo de produzir e fazer nascer o livro Cantigas de Divinas, foi também um tempo de mergulhar por uma série de leituras e reflexões sobre representatividade, assim como disse o provérbio africano: olhar para trás e saber de onde você vem.

Camila Reis contando histórias em escolas municipais de São Luís (MA) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Camila Reis contando histórias em escolas municipais de São Luís (MA)
Imagem: Arquivo pessoal

A partir de então, a vontade de interagir cada dia mais com instituições educativas veio só crescendo e se aprimorando, sempre com interesse de interagir com o público infanto-juvenil trazendo referências, informações e símbolos que representam um "nós" que nem sempre está nos livros didáticos, mas que pode estar no bairro, na praça ou na rua, e por quê não estar ali na escola? Fiz dessa inquietação meu caminhar, sempre olhando para trás e buscando entender qual deve ser o próximo passo para que a história de meus ancestrais continue viva, para que manifestações culturais do meu lugar não sejam silenciadas diante dos fluxos de intolerância que nos permeiam.

Olhar para trás trouxe para dentro de mim novas histórias e a necessidade de expressá-las, e nos últimos anos sigo como contadora de histórias passando por diversas escolas, bibliotecas, hospitais, projetos sociais etc., centenas de histórias para milhares de olhares curiosos, como uma viajante que segue a semear palavras e deixar a vida brotá-las naturalmente.

As inquietações seguem, a oralidade e música são minhas aliadas para que as inquietudes virem histórias ou canções e logo depois tornem-se reflexões na cabeça de outrem. Em 2019, nasceu meu segundo livro, Pereguedé, um conto infanto-juvenil cheio de possibilidades de reflexões e, claro, mergulhado em símbolos do meu lugar, Maranhão, e de nossas raízes africanas, através do bumba-meu-boi. A necessidade de materializar algumas histórias que sigo criando e contando em livros é somente mais uma busca de inverter essa lógica de que os livros infantis não trazem nossas histórias. Em breve, trago mais uma história materializada em livro, Caxixó, mais um conto recheado de símbolos e reflexões, dessa vez tendo a capoeira como ponto de partida no processo criativo.

O processo de criar e publicar livros partindo da cultura popular abriu diversos caminhos de diálogo entre a palavra que trago dentro de mim e aqueles que a escutam. Bem sei que não sigo sozinha, tenho diversos contemporâneos que assim como eu, seguem demarcando ancestralidade em espaços diversos com um objetivo comum: cultivar nossas as raízes africanas e indígenas, sendo resistência diante violentas atitudes que buscam o apagamento de nossas histórias.

Tudo no mundo está em transformação, somos parte disso e como pequenos grãos podemos reescrever a história da humanidade. Meu mestre de capoeira dizia que é preciso inserir o novo no velho, sem molestar as raízes e, como boa discípula, eu assino embaixo.

A Curadoria de Ecoa

Toni Edson - Causadores - Amanda Bambu/ UOL - Amanda Bambu/ UOL
Imagem: Amanda Bambu/ UOL

As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à prática jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Toni Edson, que era curador de Ecoa.