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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Da cesta básica à cesta trágica

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Imagem: iStock
Júnior Oliveira

21/11/2021 06h00

Este é um relato vivo e potente da minha experiência como mobilizador social. Estive na linha de frente da distribuição de 15 mil cestas básicas, entre 2019 a 2021, no estado do Espírito Santo. Somente este ano, já ultrapassamos mais de três mil unidades distribuídas, combatendo diariamente os números alarmantes da insegurança alimentar que assombra nosso país e que nos colocou novamente no Mapa da Fome durante a pandemia.

Difícil definir em palavras o que foram os últimos três anos. Na verdade, é exaustivo. Refleti sobre isso muitas vezes, sentado na praia aqui em Vitória.

Só em 2019 foram mais de 38 comunidades onde ativei e liderei times de voluntariado e de distribuição. Os números cresceram tanto, e tão rápido, que na segunda onda da pandemia, já agora em 2021, o fluxo operacional já estava tão acelerado e foram 45 bairros de periferias em apenas um fim de semana.

Refletindo sobre o impacto positivo e os processos das entregas, nesses privilegiados momentos na praia durante o pôr do sol ou treinando boxe em silêncio, o que me aquieta bastante a alma e o raciocínio, lembrei que para validar o "lado positivo" precisamos avaliar também o "lado negativo". Isso com muita sobriedade, seja como ser humano ou como mobilizador social. Afinal, apesar de ser cesta básica, o elemento em questão aqui é o ser humano.

Nunca foi cesta e sim sobre humanização

Independentemente se é o cidadão de classe média alta que sofreu os efeitos da crise e pegou cesta ou se é o cidadão da periferia. Ambos, com fome, devem e têm o direito de ser alvo de humanização sempre, independente da classe social, cor da pele, gênero etc.

Compartilho, então, um primeiro exemplo básico, e não trágico. Uma história real. Uma mãe de família que em uma semana era garçonete e na seguinte estava na fila de uma entrega, debaixo de sol quente, esperando cesta básica e uma botija de gás. Ela estava com os braços queimados, porque agora desempregada, teve que recolher lenha para fazer fogueira, e, na falta de prática com fogão à lenha, se queimou fazendo comida no improviso dentro do forno do fogão de quatro bocas. Impossível não parar para escutar essa mãe de família, mulher brasileira, trabalhadora. Senti meu coração chorando junto com ela.

Tiveram também lágrimas de alegria, em que como em um movimento musical e divino, nos permitimos interagir em harmonia pura, em relacionamentos saudáveis e verdadeiros, entre pessoas que ali tinham uma causa comum.
Vi, por meses, brasileiros do candomblé, da umbanda e cristãos protestantes unidos em mobilizações. De mãos dadas, trabalhando voluntariamente, juntos e sorrindo, sem discutir religião. Por uns segundos, em lágrimas também, fiquei imaginando como eram os diálogos de Martin Luther King com Gandhi. Sem dúvidas essa foi a parte boa e humanizada desses últimos anos.

Antes de você ler as linhas abaixo, em hipótese alguma coloque na mesma caixa os milhares de heróis brasileiros que distribuíram cestas básicas e combateram a insegurança alimentar com unhas e dentes. O nome deles ninguém conhece, mas serão lembrados por quem teve fome e foi acolhido. Em algum momento, alguém celebrou suas vidas diante de Deus nesses anos, sintam orgulho do seu voluntariado sincero.

Mais questionamentos propositivos e construtivos?

Vamos para a parte negativa? A que, na verdade, deve ser construtiva e propositiva.

Como de praxe no Brasil, desde a colonização, mais uma vez uma penca de brasileiros fez acontecer. Porém não com empatia e humanização, mas sim com uma brutalidade e selvageria, em nome do combate à fome. Incontáveis homens e mulheres que saíram desse período escuro mais ricos do que já eram.

Nem eles, nem a sociedade tinham a dimensão que iria chover milhões de reais com mobilizações astronômicas. No início, eram somente os seus times de marketing digital se matando debaixo de pressão, com conteúdos inspiracionais para ajudar a manter a sanidade emocional dos doadores em dia.

A verdade é que todo mundo foi pego de surpresa, mas ninguém poderia recuar, afinal, os boletos continuavam chegando. Os grandes patrocinadores somente observavam o comportamento do Terceiro Setor, enquanto mantinham a rédea firme dos seus conglomerados durante a crise econômica.

Um belo dia, do nada, a chave virou para a iniciativa privada que descobriu que responsabilidade social deixou de ser patinho feio quando o assunto era cesta básica. Que era "legal" participar do movimento que, talvez, poderia reproduzir a empatia que o Betinho gerou no passado, custeando uma operação mais barata, afinal, engajamento com emergencialismo sai mais em conta e não requer tanta tecnologia social.

Era a hora e a vez das grandes campanhas, dos "big-heads" do Terceiro Setor, dos grandes tubarões do impacto social com falas experienciais e empáticas. Eles entenderam que a mobilização operacional em massa era a onda do momento. Tudo pela "causa da fome" e para dar oportunidade ao brasileiro de bem, "trancado dentro do apartamento", de ser solidário e de se livrar do desencargo de consciência de anos de apatia e falta de engajamento com a transformação social.

Caso de sucesso desde que Brasil é Brasil. Onde há caos, há mobilização de gente. Onde há gente solidária, há empatia. Onde há fenômenos de empatia e desencargo de consciência, há imprensa e artistas. Onde eles estão presentes: há grana.

Amigos, para quem serve ao mundo, ao Brasil, como mobilizador social, o choque da adaptação operacional foi brutal. Você está rodando projetos de transformação de longo prazo, coisa que transforma mesmo a quebrada, sabe? Aí, em menos de um mês, você se pega acordando, dormindo e sonhando com cesta básica..Na minha falta de coerência, participei dessa treta toda. Hoje tenho total convicção de que, no meio desse caos, como já dizia John Stott, "crer é pensar".

E o que me mata de raiva é que tive várias oportunidades de pular fora desse barco. Mas me peguei obcecado pelos números, pelo tanto de pessoas impactadas como pela métrica do engajamento do "analytics", pois esse tipo de ação dá um engajamento bombástico e isso faz bem pro ego.

Um chamado à mea-culpa

Este artigo aqui no ECOA é curativo. É minha chance de pedir desculpas a voluntários e moradores de periferias que entrei, quase que como um robô às vezes. Este texto não irá agradar muita gente que fez fortuna, mas é o alento de muita gente bacana que conheci, que tá no corre, tenho contato até hoje. Fiz amigos nessas conexões. Gente que, como eu, se envolveu de coração nessas mobilizações e depois também se arrependeu.

Suspeito eu que é o tipo de conteúdo que toda pessoa dentro do universo do terceiro setor, ou até mesmo você, cidadão brasileiro, que fez doação e em algum momento ficou com os dois pés atrás, já pensou e não teve coragem de externalizar.

Voltando ao foco do início do artigo, onde refleti sobre impacto positivo propondo soluções. Quero te fazer um convite, um chamado de posicionamento, de monitoramento para mobilização digital, agora. Vamos, todos os cidadãos brasileiros e brasileiras, ficar de olho nessas organizações e empresas que apoiaram essas mega campanhas.

O assunto é pauta séria, principalmente agora nesse cenário que se desenha para 2022 de eleições. Quero te alertar a observar principalmente o apoio e alinhamento político, afinal, foram duas ondas de pandemia dentro da periferia e rincões do Brasil, entregando cestas e prometendo simultaneamente educação, programas de aceleração e transformação para periferias como legado.

A classe política já reconheceu o poder de decisão e influência que o terceiro setor ganhou nesses anos de pandemia. Eles precisam, podem e devem ser monitorados. Eles fizeram milhões mobilizando cestas. O segundo setor tem o dever de cumprir isso, dinheiro em caixa não falta.

Por que monitorar? Porque até agora ninguém teve coragem de chegar e meter a boca no trombone. O medo de cancelamento ainda é enorme. É o que Martin Luther King define como "o homem tolo": pessoas que têm aspirações nobres e pensamentos críticos sobre sociedade, mas preferem ficar caladas do que se pronunciar "profeticamente contra a injustiça travestida de misericórdia", com o medo de perder sua paz, networking e ser taxado de rebelde sem causa.

Então se esse movimento não for em bloco, não acredito que consigamos construir esse fluxo de monitoramento e transparência radical. Quer ver coisas que talvez você não tenha pensado sobre o porquê de monitorar? Eis o calo dessas ações.

Olhar reflexivo na economia da solidariedade

Aqueles que continuam invisíveis? Sim, quem atendeu os milhares de quilombos não reconhecidos e mapeados? Comunidades pesqueiras que não tinham pra quem vender seu peixe que acabou ficando em suas estufas apodrecendo?
Quem mapeou os milhares de funcionários do setor de eventos que da noite pro dia perderam seus empregos? Os milhares de produtores rurais que não podiam mais vender seus produtos na feira? E os produtores de alimento - comida, que passaram a pedir doações de cesta?

Pra você não achar que é perseguição pessoal contra as grandes organizações, vamos pensar sobre o poder público federal, estadual e municipal.

Cadê os dados de transparência de execução das verbas federais de uso emergencial com "aceite fechado"? Enviadas às prefeituras para uso emergencial, com uso exclusivo para compra de comida e combate a insegurança alimentar da população em situação de rua? Verbas de aceite fechado como a portaria federal nº 69 de 14 de maio de 2020? Sim, elas deveriam ter sido usadas com a população em situação de rua, elas foram? Porque há tão pouca informação sobre a execução por parte dos municípios?

Quem se sensibilizou com os coveiros? Sim, vi homenagem para médico, plano de vacina para profissionais de saúde, que, com todo o respeito do mundo, foi mega justo. Sou irmão de médica que atuou na linha de frente e dentro do setor de covid, então posso falar com gratidão sobre eles, porque minha irmã foi uma das heroínas aqui no Espírito Santo e uma das primeiras a ser vacinada.

Mas não vi plano de vacina para coveiro, não vi coveiro sendo homenageado. E, o pior, o que vi, na verdade, foram pedidos de coletivos de coveiros entrando em contato, pedido de socorro. Por outro lado, dono de funerária fazendo fortuna vendendo caixão. Isso enquanto eles (coveiros) estavam trabalhando em jornadas longuíssimas, ganhando R$ 1500 por mês, e entrando pros indicadores de insegurança alimentar também.

Com a inflação, eles não podiam parar de trabalhar, e não tinham condições mais de comprar comida. E aí você para pra refletir e pensar em 2022, o que vai acontecer com os "dados dos cartões de cadastro dessas cestas básicas" no ano da eleição presidencial e estadual?

Como milhares de pessoas foram cadastradas, existe uma "base de leads" com número, telefone e endereço de milhares de brasileiros vulneráveis que receberam cestas básicas. E esses dados nós sabemos que valem milhões para quem opera as eleições e a máquina de propaganda dos candidatos.

Em época de ajustes na LGPD, será que depois do tráfico de cestas trágicas, agora teremos o tráfico de dados das cestas trágicas em prol de candidatos em 2022? Pare um pouco, pense e respire. Tudo que é trágico pode se transformar em algo mágico. Pois quando o povo brasileiro se reúne, coisas boas acontecem. Se tem uma coisa que brasileiro anda dominando bem é a internet. Aqui ninguém consegue frear o brasileiro de bem, nem os milhares de homens tolos, que parecem se multiplicar em massa todos os dias dentro do país.

A curadoria de Ecoa

Flora Bitancourt, empreendedora social e consultora - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Flora Bitancourt, empreendedora social e consultora
Imagem: Fernando Moraes/UOL

As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à prática jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Flora Bitancourt, curadora de Ecoa.