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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O papel da pessoa branca na luta antirracista

Protesto antirracista na Filadélfia após o assassinato de George Floyd pela polícia, em junho de 2020 - Rob Bulmahn/Creative Commons
Protesto antirracista na Filadélfia após o assassinato de George Floyd pela polícia, em junho de 2020 Imagem: Rob Bulmahn/Creative Commons
Flora Bitancourt

17/10/2021 06h00

Recentemente, presenciei uma cena de racismo em que eu e uma plateia com muitos negros da periferia de São Paulo tivemos que ouvir um homem pronunciar a seguinte frase: "Sabemos que existem esportes para brancos e existem esportes para negros". A frase indigesta me trouxe repercussões físicas. Meu corpo enrijeceu e eu tremia por dentro como se tivesse perdido um ente querido. Foi um divisor de águas em muitos aspectos internos e externos para mim.

Eu não queria ter ouvido aquela fala, ninguém quer se deparar com o incômodo. Naquele momento, algo me tomou e eu não consegui me calar: criei coragem, peguei o microfone e interrompi a fala da pessoa que nitidamente estava enganada sobre as realidades dos negros no Brasil. Com certeza, esta personalidade, que estava ali para ser ouvida por gente que o admirava, não sabia que vivemos em guerra e que, no mesmo minuto em que ele verbalizava este absurdo, vinte e três jovens negros eram mortos no Brasil.

Ele ignora que vivemos 400 anos de escravização e que a abolição nunca aconteceu de fato - o que aconteceu foi o fim de um período e o início de outro, em que os negros foram libertos de uma sentença e colocados em outra, sem oportunidade, sem valorização, sem respeito a suas culturas e suas histórias. Suas habilidades milenares de agricultura utilizadas como mão de obra escrava na construção desse país nunca foram valorizadas.

Ele definitivamente nada sabia sobre empatia, pois conseguiu verbalizar uma frase racista olhando para jovens negros que lutam por um mundo melhor, os mesmos aos quais passei imediatamente o microfone para que, dentro de seu lugar de fala, nos dessem (mais uma vez) uma lição de cultura social, explicando com paciência um pouco de história.

Por alguns minutos eu hesitei, pensei que talvez não fosse meu lugar de fala nem meu papel fazer aquilo. Mas foi ao fazer que vivenciei um grande aprendizado na minha vida: entender que quando testemunhamos uma situação de opressão a alguém não podemos mais nos calar, não podemos nos abster, não podemos deixar passar.

Naquele dia em especial, eu consegui criar forças e interromper a fala execrável do sujeito, consegui falar o quão envergonhada eu estava por ser uma mulher branca naquela sala, consegui usar meu lugar de privilégio e entender que eu corria muito menos riscos ao me expor e expor aquela outra pessoa privilegiada que se assemelhava a mim e estava cometendo um crime.

Mas quantas vezes eu deixei de fazer isso nos meus 30 anos? Quantas vezes me silenciei ao ouvir uma piada preconceituosa? Quantas vezes eu não reparei que não havia negros nos espaços que frequentei? E me questiono quanto tempo mais vamos levar para transformar e entender que estas realidades são intoleráveis e que apenas juntos iremos mudá-las.

Foi a partir daí, desta ocasião que tem data, hora e local, que percebi que algumas causas sociais estão muito vivas no meu corpo, na minha vida e no que busco colocar minha atenção, intenção e ação.

O que é intolerável para você?

Trabalho há 10 anos com projetos de transformação social e impacto positivo. Talvez a pergunta que eu mais tenha ouvido e feito tenha sido: "O que te move?". Por anos buscando entender meu real propósito, concluo cada vez mais que não podemos reduzir nossa vocação a uma única resposta, mas é importante nos aproximarmos do que nos engaja, do que vibramos ao colocar nossa energia. Entretanto, recentemente, no estado de emergência em que vivemos, talvez a pergunta devesse ser: "O que é intolerável para você?" E, principalmente, "o que você irá fazer para transformar isso?".

Para mim, é intolerável ir a eventos onde não tenha pessoas negras, é intolerável saber de uma mulher sendo agredida ou oprimida, é intolerável ver a uma pessoa com deficiência ser negada a inclusão, é intolerável ver nossas florestas serem queimadas e derrubadas, é intolerável saber que durante a pandemia há pessoas passando fome, sem uma casa para dormir.

Muitas outras coisas me incomodam, mas estas se tornaram intoleráveis, e eu não consigo mais ignorá-las. Temos a tendência a olhar para todas essas situações sociais e nos paralisar, sentir que não temos como enfrentar coisas tão grandes. E, quando queremos nos posicionar, o fazemos de forma errática diante de determinadas situações.

Voltando ao preconceito racial, não é e nunca deveria ter sido papel da pessoa negra explicar sobre o racismo e muito menos ensinar para nós, brancos, criadores da racialização e grandes beneficiários desse sistema opressor. Por isso acredito que devemos agir. Da mesma forma que não é papel das mulheres explicar para o homem o que é o machismo. O famoso "dê um google" já pode te ajudar nesse processo. Ou então, eu, como mulher branca, entendendo minhas responsabilidades como parte de uma branquitude opressora, posso te indicar uma vasta bibliografia, iniciando por uma leitura muito rápida de Djamila Ribeiro, em sua brilhante coleção Feminismos Plurais.

Cito um parágrafo da filósofa, em seu livro "O que é lugar de fala?", parte desta coleção:

"Essa insistência em não se perceberem como marcados, em discutir como as identidades foram forjadas no seio de sociedades coloniais, faz com que pessoas brancas, por exemplo, ainda insistam no argumento de que somente elas pensam na coletividade; que pessoas negras, ao reivindicarem suas existências e modos de fazer políticos e intelectuais, sejam vistas como separatistas ou pensando somente nelas mesmas. Ao persistirem na ideia de que são universais e falam por todos, insistem em falar pelos outros, quando na verdade, estão falando de si ao se julgarem universais."
Djamila Ribeiro

O que Djamila nos elucida neste parágrafo é justamente a imensa dificuldade da pessoa branca em se racializar. Imagino que você esteja se perguntando "mas o que podemos fazer em relação a isso? Eu não sou racista, isso não é suficiente?" A primeira resposta é: "não, não é suficiente" e a segunda é "sim, você é racista, todos somos". Mas eu reconheço o tamanho do desafio que precisamos percorrer para nos permitirmos sentir a dor de sermos o opressor, o desafio de enxergar uma realidade tão distante da nossa, privilegiada, e o maior desafio: começar a agir.

Hoje eu compartilho isso porque quero que todos entendam que sim, temos algo a fazer. É preciso ser anti-racista, anti-machista e muito mais; precisamos estudar sobre os assuntos. O branco deve estudar sobre branquitude; o homem deve estudar sobre o machismo. Precisamos todos buscar um começo pelo qual agir. Porque esse estado de abstenção não dá mais.

Precisamos reconhecer a dor do outro, precisamos usar nossos espaços de privilégio para barrar o caos, para criar pontes, para amplificar vozes e reconhecer as diferentes camadas que nos constituem. Te faço este convite.

É muito importante entendermos que NÃO SOMOS TODOS IGUAIS. Temos milhares de características que nos formam, que traçam nossa história, nossas identidades e precisamos tanto honrar nossa ancestralidade quanto reconhecer nossas origens opressoras e fazer diferente, quebrar padrões, desconstruir crenças e sentir que precisamos ser intolerantes ao que está matando os nossos.