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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É um progresso se um canibal usar um garfo?

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Imagem: iStock
Josefa Garzillo

18/09/2021 06h00

Quando percebemos que o mundo está sendo destruído, os poetas nos oferecem algum alento pela via da beleza. Ao ler o 6º relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) lançado em agosto de 2021, lembrei-me de um poema de Álvaro de Campos. Nele, o poeta se mostra cansado de tantas contrariedades, sua alma está vazia e ele procrastina sua própria vida. "Grandes são os desertos, e tudo é deserto".

As mensagens do 6º relatório do IPCC não surpreendem e deixam claras a procrastinação das providências para a estabilidade climática, que foram insuficientes. A situação do mar e da terra para absorver o carbono, os eventos climáticos mais intensos e frequentes, os cenários futuros das emissões de gases do efeito estufa e seus impactos: tudo explicado em quase 4 mil páginas fundamentadas com centenas de publicações de importantes centros de pesquisa do mundo.

A ciência do clima não é nada trivial. São necessárias equipes de especialistas para ler e interpretar bem as informações deste 6º relatório. De imediato, o documento subsidiará a 26ª conferência das partes (COP) de Glasgow no âmbito da Convenção Quadro para as Mudanças Climáticas das Nações Unidas (UNFCCC), em novembro de 2021.

Espera-se que uma conferência como a COP chegue a algum tipo de avanço civilizatório. Os países que participam têm grandes diferenças quanto a fauna, flora, hidrologia, agricultura, culinária, política, religião, história etc. As raízes da crise climática — ou os entraves para a sua resolução —, porém, parecem não estar tanto na diversidade de contextos dos países, mas na base do sistema econômico globalizado que os iguala. Em comum, a dependência de petróleo e carvão mineral, a queima de florestas nativas e o estímulo a um modo de vida baseado no consumo de muitas coisas que logo viram lixo. Tudo isso atrelado à grande desigualdade de renda para acessar aquilo que de melhor essa economia promete em troca da degradação ambiental.

A economia gira na esperança de resultados positivos na última linha do balanço financeiro (o lucro). No final do século 20, o britânico John Elkington criou uma metáfora contábil que ainda faz sucesso no mundo corporativo: o triple botton line. Por questões éticas — às vezes por puro marketing —, algumas empresas passaram a cuidar da última linha do balanço contábil como se ela fosse tripla, com resultado social, ambiental e financeiro. Desde então, o mercado evoluiu com práticas de gestão e prestação de contas, chegando ao conjunto das práticas ambientais, sociais e de governança (ESG). Mas parece que todo esse movimento tem sido ineficaz, tomando por base a condição climática descrita no 6º relatório.

"Canibais com garfo e faca" é o título do livro que traz o conceito de triple botton line. Pensando em como uma empresa engole violentamente a outra para eliminar a concorrência, Elkington lembrou-se da pergunta do poeta polonês Stanislaw Jerzy Lec: "É um progresso se um canibal usar um garfo?" Para Elkington, sim, o uso de ferramentas mais civilizadas seria um progresso, um cuidado com as questões sociais e ambientais.

Lec jamais imaginaria que um de seus aforismos marcaria a entrada da sustentabilidade ambiental nas empresas. Se a pergunta dele suscitou a analogia sobre uma empresa eliminando a outra, poderia um empreendimento poluidor também ser considerado canibal porque elimina a biodiversidade e destrói o sistema climático?

Para estender a analogia desse jeito, nós precisamos reconhecer que as empresas são formadas por pessoas e que as pessoas têm um grau de parentesco com a Terra e os demais seres vivos. Peço licença a John Elkington, a analogia continua válida, mas não me parece que a etiqueta possa sozinha significar um progresso ou arrefecer os efeitos da atitude canibalesca. A pergunta de Lec está carregada de ceticismo e ironia.

O mercado precisa mudar e logo. Depois de 30 anos de existência da UNFCCC, um dos problemas ecológicos mais graves da modernidade continua desenfreado e a humanidade está sem pressa. Quem tem o poder para resolver não está à altura do desafio. Refiro-me aqui aos poluidores que por vezes negam as mudanças climáticas, desviam o problema para outros setores, apostam em ações não transformadoras ou são indiferentes, buscando o lucro imediato e nada mais.

Os cenários pessimistas dos ambientalistas são verdadeiros e os consumidores devem adotar o princípio da suficiência. Mas como escreveu Lec, "Cada floco de neve em uma avalanche se declara inocente". No futuro, nossa época será classificada como a Era dos Procrastinadores — aqueles sem a diligência necessária na correção de rumos — e não o Antropoceno, como querem os otimistas, que dão à humanidade o estatuto de força geológica que destrói o planeta de modo acelerado. Outra vez Lec: "Otimistas e pessimistas diferem apenas sobre a data do fim do mundo". Outra vez Álvaro de Campos: "Mais vale arrumar a mala. Fim".