Topo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cringe é ter que viver sem perspectiva de futuro

Cringe é ter que viver sem perspectiva de futuro - Nicole Rauen (com a capa do álbum Blonde, do Frank Ocean)
Cringe é ter que viver sem perspectiva de futuro Imagem: Nicole Rauen (com a capa do álbum Blonde, do Frank Ocean)
Lucas Alves

26/06/2021 06h00

Esqueça o café da manhã, o uso de emojis ou até mesmo o cabelo partido de lado: não existe nada mais cringe hoje do que ela, a falta de perspectiva de futuro para o jovem brasileiro.

Quem foi pego de surpresa pela última grande discussão da internet descobriu que cringe é uma expressão recente para algo já bem conhecido: a vergonha alheia que os mais jovens sentem dos mais velhos. Ainda que o termo tenha se desgastado com a mesma velocidade que os memes param de ter graça (a própria discussão, em si, já virou cringe), ela trouxe à tona a falta de conhecimento geral sobre o comportamento dos jovens - em especial, da Geração Z (nascida aproximadamente após 1995).

Primeiro, a extensa lista de atitudes supostamente consideradas cringe sequer é uma unanimidade entre eles. Isso não impediu que millennials (nascidos entre 1980 e 1995) e outros mais velhos levassem a discussão para o coração e correrem para se defender. Como assim, eu millennial, que vi a internet nascer e até então era considerado o grande apontador de tendências, envelheci? Uma reação bem cringe, diga-se de passagem. Teve até quem bateu no peito e falou "sou cringe mesmo, e daí?", uma resposta um pouco mais digna, já que o que o jovem de hoje acha brega ou não nem importa tanto assim.

Historicamente, uma geração mais nova sempre elegeu características e atitudes da mais velha para se ter vergonha. Só que hoje, essa discussão também está longe de ser uma prioridade entre os jovens. Afinal, sobre o que eles se preocupam então?

Ter os seus direitos negados: cringe

O Brasil tem hoje a maior geração de jovens da sua história. Segundo o Atlas das Juventudes, são quase 50 milhões de pessoas entre 15 e 29 anos, que representam ¼ da população. É um grupo radicalmente diverso e impossível de ser definido como uma coisa só. Cada jovem vivencia uma realidade diferente e passa por um processo de transição único e individual na vida, sendo que muitas dessas vivências ressoam no coletivo.

Uma frase comum dita por muita gente (e vamos combinar, meio cringe) é que "a juventude é a melhor fase da vida". Teoricamente, era para ser mesmo. Mas são inúmeros os exemplos de que o jovem brasileiro tem os seus direitos negados (e que são garantidos pelo Estatuto da Juventude), o que faz com que ele tenha uma experiência muito mais dura do que realmente deveria ser.

Veja o emprego, por exemplo. Uma das coisas consideradas cringe por um jovem tuiteiro foi o "pagamento de boletos". Algo tão natural para quem trabalha e paga as contas, não é mesmo?

Atualmente, 70% dos jovens brasileiros têm dificuldade para encontrar emprego. Ao final de 2020, a taxa de desemprego jovem entre 18 e 24 anos era maior que o dobro da média geral do resto da população (29,8% contra 13,9%, segundo o IBGE). Como se isso não bastasse, a pandemia elevou a fatia de jovens "nem-nem", que não estudam nem trabalham, a quase 30%. Uma questão que tem muito mais a ver com falta de oportunidade do que com uma suposta "vagabundagem", diante do fechamento de postos de trabalho e da dificuldade do acesso à escola.

Pode ser por isso que algo tão simples como pagar um boleto, e que é economicamente inviável para muitos jovens, acabou virando cringe.

Mas o desemprego é só uma parcela do abismo em que o jovem de hoje se encontra. Com a pandemia, os índices de ansiedade e depressão na juventude, que já eram considerados altos, acabaram explodindo. Os adolescentes e pré-adolescentes são alguns dos que mais têm a saúde mental afetada pelo isolamento. No Brasil, uma pesquisa da Fundação Lemann com o Itaú Social mostrou que 77% dos estudantes na pandemia estavam tristes, ansiosos, irritados ou sobrecarregados. Diante disso, é possível dizer que o jovem brasileiro tem pleno acesso ao direito à saúde?

E quanto ao genocídio da juventude negra, um dos maiores problemas não só da juventude, mas do país? Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, 74,4% das vítimas de violência letal no Brasil eram negras e 51,6% eram jovens de até 29 anos. Eles também representaram mais de 70% das vítimas de intervenções policiais. Diante disso, é possível dizer que o jovem brasileiro tem pleno acesso ao direito à segurança?

A falta de perspectiva é tamanha que uma das conclusões óbvias das quais eles chegam é de que é melhor de fato deixar o país e tentar a vida em outro lugar. Quase metade dos jovens brasileiros relatam esse desejo atualmente. E alguém pode culpá-los?

Até então, os quase 50 milhões representavam algo que é o sonho de qualquer nação: o chamado "bônus demográfico", quando a pirâmide etária mais jovem traz vantagens econômicas essenciais, como a geração de riqueza, produtividade e inovação. Mas adivinha quem comeu bola e deixou a oportunidade passar? Ele mesmo, o nosso ex-país. Conforme essa população envelhecer, a pirâmide deve se inverter, com menos produção e maior consumo da previdência (caso ainda haja alguma). Especialistas dizem que ainda é possível reverter o cenário, mas o tempo é curto.


Precisamos construir uma nova perspectiva de futuro com o jovem

A falta de perspectiva em relação ao futuro está longe de ser um problema exclusivo da Geração Z, apesar de ser mais intensa com ela. Um bom exemplo recente talvez seja o boom no acesso à universidade que se deu nas últimas décadas, vividas pelos millennials. Era o sonho de que muitos mais poderiam se formar, trabalhar na área que quisessem e viver disso. Quantos desses, já não tão mais jovens assim, acabaram sem emprego e se frustraram? Vamos deixar que a história se repita?

Quando ouvimos por aí que tal grupo é uma "geração perdida", esse conceito tem muito mais a ver com a falta de visão e planejamento de país do que com uma juventude que "não está nem aí para nada".

Uma sociedade que consegue proteger os direitos da sua população jovem permite que esse potencial se concretize como crescimento e prosperidade para todos.

Para isso, é fundamental que formadores de políticas públicas, grandes ou pequenos negócios e iniciativas da sociedade civil apoiem o pleno desenvolvimento de jovens, e garantam que eles possam realizar seus potenciais coletivos e individuais.

A melhor forma de propor novas soluções e garantir que elas sejam verdadeiramente significativas é cocriar junto com quem vai usar. Se discutimos tanto a criação de novos futuros possíveis, por que não trazer para a conversa aqueles que têm mais chance de viver nesse futuro? Não é sobre dar protagonismo, e sim sobre conduzir o processo adequado para que esse potencial seja atingido.

Um dos grandes objetos de desejo das marcas é a conquista do público jovem. Por que não pensar em propostas que não os impactem apenas temporariamente, mas que os ajudem nesse período tão difícil e colaborem para uma perspectiva de futuro mais positiva?

Por fim, do meu lugar de alguém com 25 anos e que transita entre as duas principais gerações atuais de jovens, quero deixar aqui a minha lista de coisas das quais considero realmente cringe:

  • Não comprar vacina;

  • Perder todos os rolês, aulas presenciais na escola e faculdade, além de todas as experiências físicas que constituem a juventude - porque alguém não comprou vacina;

  • Imaginar que você vai ter que trabalhar até morrer, sem se aposentar nunca;

  • Concluir que a única oportunidade de carreira que existe é vender pack do pezinho no Onlyfans;

  • Ter que explicar que a ausência de perspectiva de futuro do jovem não é culpa dele, e sim da falta de oportunidade e planejamento da sociedade.

E claro, o que mais o jovem quiser pode ser cringe também. Mas isso é o de menos.