Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Meu encontro com Nelson Sargento
O ano era 2010 e eu estava dando início à coleta de dados da minha pesquisa de doutorado. Para estudar cientificamente o processo de criação artística de Nelson Sargento, precisava realizar uma entrevista em profundidade com o sambista. Marcado o encontro, fui até o Rio de Janeiro.
Sou uma londrinense que veio ao mundo em solo carioca. Nasci no bairro do Irajá e meus pais vieram para Londrina, no norte do Paraná, quando eu tinha menos de um ano de idade. Desde então, toda oportunidade de voltar ao Rio sempre foi muito esperada e festejada. Assim eu fui aprendendo a amar a cultura carioca de um jeito muito intenso. Me tornei uma sambista apaixonada por carnaval e torcedora da Mangueira.
Isso explica o frio na barriga que me acompanhou no trajeto de ônibus entre o hotel e a casa de Nelson Sargento, localizada em Copacabana. Ora o coração da mangueirense disparava, sabendo que iria se encontrar com um baluarte do samba, ora a cientista respirava fundo e conferia o roteiro da entrevista.
Quando a Evonete, esposa de Nelson Sargento, abriu a porta do apartamento, me deparei com o antológico violão que ele tocou no espetáculo Rosa de Ouro. Já conhecia o instrumento através de fotos, mas estar ali, diante daquela relíquia histórica, foi de um encantamento! Um prazer que quem é cientista sabe explicar e quem é sambista certamente sabe sentir.
Da sala, avistei uma coleção de discos farta em quantidade e qualidade, que só não guardava mais raridades que a própria memória prodigiosa do sambista. Na estante, troféus e homenagens confirmavam que ali residia uma figura fundamental da cultura brasileira. A presença do verde-e-rosa no ambiente foi amplificada quando Nelson apareceu com a camisa da Mangueira. Então já não era mais possível separar a sambista da cientista.
Enquanto eu me preparava para iniciar a entrevista, ele deu início à conversa, falando que não se sentia realizado. "Tenho sempre a intenção de aprimorar o que eu faço. São tantos projetos que vou precisar fazer um acordo com São Pedro, para me deixar por aqui pelo menos até 2030."
A entrevista durou quase duas horas, em sua sala de jantar. Logo que entendeu meu interesse pelo processo de criação artística, ele perguntou: "Quer conhecer meu ateliê?". Respondi prontamente que sim. "Você está nele", disse o artista, apontando para as telas em elaboração ajeitadas no chão, ao lado da mesa de jantar.
Perguntei então se poderia ter acesso aos rascunhos, anotações e primeiras versões de algumas de suas composições. Esse é um dos métodos da Crítica Genética, área do conhecimento que estuda o movimento criador. Partimos do pressuposto que uma obra de arte não nasce pronta e buscamos revelar o que a obra pronta nem sempre dá conta de transmitir.
Ele achou estranho esse interesse por rascunhos, óbvio. Daí falei que a proposta era mostrar a beleza dos bastidores da criação. Fui explicando que estudamos o caminho percorrido pelo artista em busca da melhor maneira de comunicar uma ideia. Chamamos isso de estética criadora. Ele me ouviu atentamente, se levantou e saiu em direção a um dos cômodos da casa cantarolando: "Tá legal, eu aceito o argumento." Na volta, trouxe em mãos um tesouro para os arqueólogos da criação artística: seus cadernos de anotações. Me esbaldei.
No encerramento da entrevista, quando já me despedia, ele disse que eu não sairia dali sem que ele cantasse. "E essa é inédita" anunciou ele, já dando os primeiros acordes: "Esta casa vazia/ onde o nosso amor era lindo de ver/ tudo agora é saudade/ dura realidade sem você/ solidão também mora/ nesta casa vazia/ solidária comigo nesta nostalgia."
Como cientista saí dali abastecida de exemplos sobre a ideia de cultura como modo de vida: às telas em elaboração em sua "salateliê", o caderno de anotações como um manancial de obras em construção, os discos mostrando a riqueza de suas referências. Como sambista, saí em estado de graça por tudo que vivenciei ao lado de um ídolo, e absolutamente encantada com a gentileza de Nelson. Foi como ganhar uma deliciosa sobremesa depois de saborear um banquete.
Depois desse, vieram outros encontros e entrevistas. Em 2013 participei de sua posse como presidente de honra da Mangueira. No ano seguinte, estivemos juntos na Rua do Ouvidor, quando lancei o livro que é resultado de minha tese. De lá pra cá, publiquei artigos, fiz palestras, apresentações em congressos, espetáculos musicais, programas de rádio, entrevistas e lives sobre Nelson Sargento.
Ele não estará por aqui em 2030, como havia combinado com São Pedro, mas a poesia de suas canções, as cores de suas telas e as histórias que registrou vão atravessar muitas gerações. Seu legado é como seiva que alimenta o jequitibá do samba.
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