Topo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Gaia deu as costas para a humanidade

Davi Kopenawa Yanomami em cena do documentário "A Última Floresta", de Luiz Bolognesi - Pedro J Marquez/Divulgação
Davi Kopenawa Yanomami em cena do documentário 'A Última Floresta', de Luiz Bolognesi Imagem: Pedro J Marquez/Divulgação
Elaíze Farias

06/05/2021 06h00

"Gaia foi tirar um cochilo e decidiu dar as costas para esta humanidade, Elaíze". Pouco mais de um ano atrás, Ailton Krenak sentenciou o que se passava no mundo naquele início pandêmico. Estas e outras palavras do líder indígena fixaram-se na minha memória.

Trocávamos impressões e reflexões sobre o momento incerto do nosso planeta doente; e ele foi certeiro sobre o que a Mãe-Terra estava fazendo conosco. Tudo ainda era novo e eu estava assustada; iludida com a extensão da pandemia da covid-19. Achava que duraria alguns meses.

Nos últimos tempos, Ailton Krenak transmutou-se. Há mais de 30 anos, foi a emblemática figura que pintou o rosto de jenipapo na frente de parlamentares para cobrar direitos dos indígenas na carta magna de 1988. Nos anos seguintes, tornou-se referência de premissas ontológicas dos povos originários, em contraste com a racionalidade ocidental, eurocêntrica.

Na pandemia, refugiado em sua aldeia no Rio Doce, em Minas Gerais, passou a expandir sua sabedoria para o mundo virtual, nas incontáveis lives das quais participa. Tem partilhado conhecimento, erudição pessoal e, claro, a vasta estrutura cosmológica dos povos indígenas, mostrando que há outras perspectivas de mundo fora da caixinha ocidental.

No dia 19 de abril, Ailton esteve no programa Roda Viva, da TV Cultura e, como comentei em uma rede social, ele respondeu às perguntas da maneira que quis. O espectador que teve cognição e humildade compreendeu. Nada mais tranquilo do que testemunhar a calamidade deste mundo ouvindo Ailton Krenak.

Por que iniciei este texto falando do Ailton? A sabedoria e o conhecimento dos povos originários operam com uma lógica diferente da ocidental, pois é uma compreensão que vai além da inteligência racional cartesiana.

A capacidade de analisar vem de uma sabedoria de várias experiências ancestrais e coletivas de cada um dos povos; vem da cosmovisão, das relações com os seres da natureza como organismo vivo e sujeito de direitos; sejam pedras, rios, florestas, animais, etc. São formas diferentes de compreender o mundo, visto a partir de outro intelecto e de outras perspectivas. E, por vezes, estes povos já perceberam o que somente agora parte do mundo ocidental se deu conta: que o planeta está em colapso.

"Quem já ouvia a voz das montanhas, dos rios e das florestas não precisa de uma teoria sobre isso: toda teoria é um esforço de explicar para cabeças-duras a realidade que eles não enxergam", diz Ailton Krenak em "A vida não é útil". No livro, o líder indígena mostra que a humanidade não está com essa bola toda e que, ou a gente "ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto conosco, ou faz guerra contra a vida na Terra".

"Destruir a floresta, o rio, assim como ignorar a morte das pessoas, mostra que não há parâmetro de qualidade nenhuma na humanidade, que isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade".

Mas essa conexão entre humano e natureza não transita apenas na dimensão do metafísico. Não tem nada de extático. É também um conhecimento que opera como uma prática de resistência ao colonialismo, que há mais de 500 anos pensa o meio ambiente nos países sul-americanos como um celeiro para exploração de matéria-prima. Exatamente como a floresta amazônica vem sendo vista há mais de 50 anos, desde a ditadura militar, passando pelos governos democráticos, até o atual momento sem precedentes de ataque à floresta amazônica e de perseguição aos povos indígenas.

No momento em que escrevo este texto, estou nas páginas finais de "A Queda do Céu", de autoria do líder Yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert. "A Queda do Céu" é uma obra-prima indispensável. Há mais de 30 anos Davi denuncia a presença de garimpeiros no território Yanomami, localizado no norte do Amazonas e em Roraima.

Nos últimos três anos, uma nova leva de garimpeiros avança sobre a floresta da terra Yanomami, desvia rios e leva doença. "Por que eles não trabalham em sua própria terra?? Não passam de comedores de metal cobertos de xawara (doença)", indaga Davi Kopenawa, no livro.

O líder Yanomami diz que o mundo dos brancos quase não tem mais floresta e eles não podem mais beber água. Agora, querem fazer o mesmo com o território Yanomami. Por que? Por causa da mercadoria.

"As mercadorias deixam os brancos eufóricos e esfumaçam todo o resto em suas mentes. Nós não somos como eles. Mais do que nos objetos que queremos possuir, é nos xapiris que nosso pensamento fica concentrado, pois só eles são capazes de proteger nossa terra e de afastar para longe de nós tudo o que é perigoso", diz o líder e xamã Yanomami.

Nada mais real de um mundo em colapso do que águas poluídas por mercúrio, garimpeiros cooptando indígenas prometendo falsas ilusões de riquezas e causando conflito sociais.

No momento em que empresários da mineração querem autorização para explorar as terras indígenas, presenciamos uma natureza em crescente esgotamento, com águas contaminadas e animais ameaçados. Cientistas já alertam para o risco de um novo vírus surgir por causa do desequilíbrio ecológico, desta vez na floresta amazônica.

Pensadores como Ailton Krenak e Davi Kopenawa Yanomami propõem uma transformação civilizatória frente ao modelo capitalista e exploratório.

No lugar de um processo devastador de acumulação permanente de bens, um modo de se colocar no mundo que aponta uma ética baseada nos saberes e nas culturas dos povos originários que não resulte na deteriorização ambiental. Sem essa saída urgente, os mais prejudicados somos nós mesmos, que tanto precisamos da natureza.