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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A cozinha brasileira e suas múltiplas identidades

Tamires Costa
Imagem: Tamires Costa
Vilson Caetano

28/04/2021 06h00

Não é de agora a preocupação com os nossos "comes e bebes." Por outro lado, a provocação icônica de Sílvio Romero nos finais do século 19 sobre a presença da "África na cozinha, a América nas selvas e a Europa nos salões", ainda ecoa entre nós; não apenas por ser revisitada com frequência para explicar o nosso processo de formação cultural mas também para denunciar os papeis e lugares sociais designados para africanos e seus descendentes juntamente com os povos indígenas num país longe de ser uma democracia racial.

O nosso conceito de cultura alimentar não se restringe às coisas de comer e de beber. Utilizamos o termo de maneira inclusiva, abrangendo desde a forma como a comida é produzida, às suas diferentes concepções, escolhas alimentares, comportamentos habituais, estilo de vida, relações e formas simbólicas expressas através de rituais que permitem demonstrar que o comer ultrapassa a dimensão biológica e a cozinha pode ser analisada sob aspectos sociais, econômicos, políticos, históricos, culturais e religiosos.

Embora a busca por uma "cozinha nacional" tenha sido projeto que começou a ser delineado a partir dos anos de 1930, é anterior a este período, a concepção de que a permanência de elementos indígenas e a presença de produtos africanos significava uma espécie de atraso à civilidade preterida. Em jornais e revistas do século 19, por exemplo, abundam termos como "angu de caroço" e "moqueca," empregados de forma jocosa em alusão à maneira de organização de cidades como Salvador, capital da Bahia. Isso sem esquecermos a Faculdade Baiana de Medicina, onde não faltaram teses que associavam doenças a comidas e hábitos alimentares de origem não europeia. Refiro-me a isso porque a noção de uma "cozinha nacional", assim como a de "uma cultura brasileira", bem como a tentativa de recortar as regiões do país através da comida, além de criar hierarquias e distinções, tem servido para encobrir a dinâmica das matrizes culturais que nos formaram.

A obra de Gilberto Freyre e dos demais autores impulsionados por ele, não apenas seguiram à risca a nossa suposta formação através "do mito das três raças", mas também silenciaram sobre a participação de alguns grupos como protagonistas do processo de formação da chamada cultura alimentar brasileira. Embora se reconheça que plantas como o milho, a mandioca, o feijão e utensílios presentes de forma secular em nossas cozinhas estejam na base desta cultura alimentar, ou supervaloriza-se estas presenças indígenas em detrimento de outras, ou elas são reduzidas a uma base a partir da qual foram realizadas as adaptações e invenções de cozinhas vindas do além mar.

Fato semelhante teria acontecido com as dietas alimentares chegadas do continente africano. Alguns autores têm insistido que estas teriam servido de base para atender o gosto e o paladar europeu. Se junta a isso, o silêncio sobre o conhecimento de ingredientes e técnicas que antecedem a chegada dos portugueses a este continente, que quando adentradas em algumas cozinhas, chegam batizadas com nomes franceses.

O processo de formação da cultura alimentar brasileira não pode ser entendido a partir da suposta "plasticidade social" e muito menos através da ideia da "cozinha da sinhá" como um lugar onde técnicas e alimentos indígenas alternavam-se entre mãos negras que adaptavam estes ingredientes sob o olhar atento da mulher branca que lhes vigiava, imprimindo, assim a sua marca às adaptações e criações.

Até certo tempo, a afirmação de que o nosso doce era "um doce mais doce do que o doce de Portugal," soava como uma espécie de crítica a preparações genuínas que criamos como a cocada, o quindim de iaiá, o pé de moleque, o quebra queijo e as compotas de frutas tropicais, apenas para citar algumas. Não criamos somente doces, mas bolos e biscoitos a partir de plantas civilizatórias como a mandioca e o milho, antes mesmo da chegada dos portugueses e anterior à constatação de que a farinha de trigo trazida de Portugal chegava aqui estragada.

Nos últimos anos tem-se recorrido à ideia de uma "cozinha mestiça" em contraposição à noção de "cozinhas regionais", cujas fronteiras têm se demonstrado frágeis. A suposição de uma "comida mestiça" também pode servir para encobrir não apenas relações de violências, mas também fundamentar a sobreposição do grupo que historicamente vem tentando nos dominar através da imposição de seus conceitos, mundos e estilos de vida.

Quem nos ler até aqui pode está se perguntando sobre a arbitrariedade e fragilidade de certos conceitos que a bem da verdade funcionam mais como um gatilho para a se pensar relações políticas, relações de poder. Porque ainda hoje são poucos que podem escolher o que vão comer.

Retomemos, por fim, a frase inicial de Sílvio Romero. Ele fala sobre a cozinha num momento em que ela era um lugar desprestigiado. E, hoje, quando pensamos esta cozinha, qual a imagem que fazemos deste lugar? Ainda insistimos em sair da "selva." Queremos adentrar aos salões a partir de nossos lugares; não apenas como comidas exóticas ou plantas alimentícias não convencionais; falando nossas línguas sem precisar arranhar palavras francesas. Precisamos pensar na cultura alimentar brasileira a partir de um leque de identidades que ela pode nos proporcionar. Isso nos levará a saborear conceitos dispersos de norte a sul do país de maneira mais diversa.

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