Topo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Uma história sobre apoio e aceitação

Gabriela Augusto bebê - Arquivo pessoal
Gabriela Augusto bebê Imagem: Arquivo pessoal
Gabriela Augusto

21/04/2021 06h00

Quantas histórias já não ouvimos sobre pessoas trans que não são aceitas pela família? Desde pais que não respeitam o nome social de seus filhos até relatos de violência física. Infelizmente essa é a realidade com a qual nos deparamos hoje e que tentamos reverter.

Mas é importante notar que quando falamos de pessoas trans, não estamos nos referindo a um grupo homogêneo. As narrativas são plurais e podemos encontrar vivências muito diferentes. Então, gostaria de demonstrar isso com a minha história.

Antes de falar mim, devo contar um pouco sobre meus pais. Minha mãe, Raquel, sempre foi uma pessoa bastante simples. Por ter que trabalhar desde muito jovem, ela só conseguiu estudar até a quarta-série. Meu pai, Carmelo, estudou até o ensino médio, trabalhou como flanelinha, mas com muito esforço conseguiu um emprego em um banco. Os dois se conheceram em uma praça chamada Benedito Calixto e se casaram. Sempre muito reservados, o passatempo preferido deles era cuidar das plantas e ouvir Roberto Carlos.

Nasci no ano de 1993, em São Paulo, capital. Fui designada menino no momento em que vim ao mundo, mas comecei a me questionar sobre isso ao longo da minha vida. A primeira vez que me lembro de ter questionado minha identidade de gênero foi aos quatro anos de idade. Uma de minhas primas estava em minha casa e quis colocar o vestidinho de sua filha em mim. Eu fugi e me escondi debaixo da cama. Mas, enquanto estava lá no escuro, fiquei pensando se a minha verdadeira vontade não era provar aquela peça de roupa.

Conforme fui crescendo, meu anseio de fazer parte do universo dito feminino só aumentava. Ainda criança, via os corpos e as roupas de banho das minhas colegas de natação e queria ter aquilo em mim. Em determinado dia, peguei uma sacola de supermercado, cortei dois círculos em sua parte inferior e transformei no meu próprio maiô. Minha mãe viu e, num ato de amor e carinho, disse que eu não precisava fazer aquilo. Ela me disse que, se eu quisesse, poderia usar alguma peça do guarda roupa dela.

E assim os anos foram passando. Confesso que nunca me senti cem por cento à vontade usando as roupas da minha mãe. Não sei porque, mas, apesar de tudo, ainda parecia errado. Eu ainda me "escondia" para fazer isso: pegava escondido uma peça de roupa da minha mãe, me trancava no quarto, provava e ficava me olhando no espelho.

Quando eu estava prestes a fazer 18 anos meu pai faleceu. Foi um momento bastante difícil, ficamos apenas eu e minha mãe. É estranho dizer isso, mas o fato dele ter partido fez com que eu tivesse menos medo de "decepcioná-lo" por conta da minha identidade de gênero.

Meu pai era uma pessoa que eu admirava muito e por quem tinha um grande respeito. Apesar de um homem simples e de pouco estudo, ele tinha bastante compreensão. Lembro-me certa vez dele registrar momentos de uma brincadeira de infância no qual eu vestia peças de roupas femininas. Diferente do que muitos pais costumam fazer, ele não me repreendeu ou fez piadas com a situação. Não sei como ele reagiria a minha transgeneridade, mas gosto de pensar que ele teria me apoiado.

Durante a faculdade, entrei em contato com várias outras realidades e acabei criando a força para viver a minha transgeneridade de forma pública. Foi nesse momento que a Gabriela nasceu. Junto dela, a necessidade de falar para as pessoas do meu entorno que eu não era mais ele e sim ela. Eu nunca "contei" para a minha mãe que eu sou trans. Simplesmente fui deixando de lado as coisas atreladas ao gênero masculino e me permitindo viver aquilo que estava relacionado com o universo feminino. E a Raquel sempre entendeu muito bem esse meu movimento, do seu jeito. Por ser uma pessoa mais reservada, ela tem uma forma diferente de demonstrar apoio e afeto. Ela não precisou dizer que me aceitava como sou, apenas seus gestos já demonstravam seu sentimento.

No início da transição, quando eu usava perucas e enchimentos nos seios, ela passava horas desembaraçando os fios dos cabelos e saia em buscas de sutiãs especiais.

Tenho certeza de que esse apoio que recebi me deu coragem para enfrentar os desafios da vida. Com 26 anos me formei em direito em uma importante universidade, fundei uma empresa de consultoria e assumi um cargo de gestão, passando a trabalhar com importantes projetos no Brasil e na América Latina.

Hoje, de vez em quando, publicam uma matéria ou artigo sobre o meu trabalho em algum jornal e minha mãe se enche de orgulho.

Então, quando conto essa minha história, meu objetivo é promover a seguinte reflexão: você que é pai ou mãe de uma criança que não se enquadra nos padrões de gênero e sexualidade, já pensou em como o seu apoio pode ser importante pra ela? Já parou para observar como essa sua aceitação é expressada em pequenas atitudes? Uma coisa é certa, o que você faz hoje, define o futuro dela amanhã.