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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No Big Brother da vida real, vigilância não é entretenimento

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Giovanna Preti e Leonardo Santana

31/03/2021 06h00

Nos últimos dias, assistimos atônitos (pois ainda não perdemos a capacidade de nos indignar) à aplicação da Lei de Segurança Nacional contra o youtuber Felipe Neto e manifestantes que ostentaram uma bandeira em frente ao Palácio do Planalto chamando o presidente Jair Bolsonaro de genocida. O uso dessa lei expõe algumas fragilidades da nossa democracia, que se manifesta pela persistência de uma série de normas pouco coerentes com os princípios da Constituição Federal.

No Congresso Nacional tramitam, diariamente, um conjunto de propostas que criminalizam movimentos sociais e protestos, limitam o espaço cívico e instituem mecanismos de vigilância sem despertar a devida reprovação da sociedade, que não enxerga como esse controle pode afetar as atividades cotidianas.

O aumento do número de inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional e o avanço na tramitação de propostas que visam alterar a Lei Antiterrorismo, por exemplo, são sinais cada vez mais claros de que uma investida autoritária não se realiza a partir de um único ato, como um golpe, mas que se constrói no dia a dia. A proposta mais grave, hoje, é a do PL 1595/2019, um projeto pensado por Jair Bolsonaro quando ainda era deputado federal e reapresentado pelo deputado federal Major Vitor Hugo (PSL-GO). A alteração na lei prevê a criação de um sistema de inteligência com base no acesso a dados de comunicações privadas, excludente de ilicitude em ações contraterroristas, dentre outras medidas.

Para trazer o vigilantismo mais para perto, há o fato que delegacias têm utilizado "catálogos de suspeitos", que trazem um banco de fotos que não fazemos ideia de onde foram coletadas. O reconhecimento por meio dessas fotos muitas vezes é utilizado como prova única para incriminar uma pessoa. O resultado? Inocentes na cadeia, sendo que 83% desses inocentes são negros. O reconhecimento facial é mais uma ferramenta que impõe o controle social, viola o direito à privacidade e pode trazer um sem-número de injustiças.

Esses projetos assustam. E não são os únicos. O que temos no Brasil hoje não é justiça, é um sistema de controle que retira pessoas "indesejáveis" da vida social. No limite, somos mais vigiados do que no Big Brother. Isso acontece em incontáveis projetos de lei além dos já citados. Nossos rostos são conhecidos e identificados por uma série de tecnologias: nos smartphones e mídias sociais, no transporte público, em aeroportos e em câmeras de rua. Essas tecnologias, que não são novas, estão gerando um banco imenso de dados que tem sido utilizado para reconhecimento de suspeitos e, em menor medida, ajudar a localizar foragidos da justiça.

Esses elementos estão entrelaçados por uma lógica grave de vigiar e punir, mas este texto alarmista não tem como intuito te deixar paranoico, e sim alertar para a necessidade de compreender que o que se decide sobre o sistema de justiça criminal tem consequências diretas para toda a sociedade. O uso da tecnologia é político e no sistema de justiça não está sendo destinado a garantir direitos básicos.

O sistema penal tem sido laboratório das experiências autoritárias, em que a sociedade confere ao Estado cada vez mais legitimidade para violar suas próprias regras e testar mecanismos de controle que em pouco tempo alcançam o cotidiano e passam a limitar os espaços e ações das pessoas. Mudá-lo passa por inverter a perspectiva de como enxergamos a justiça e como combatemos a violência. E aqui temos um spoiler: não será pelo punitivismo, criando inimigos imaginários, nem testando novos produtos em cobaias humanas. Será conduzindo essas tecnologias e políticas públicas com um olhar para a prevenção, que passa primeiro pela diminuição da desigualdade.

Nosso país é grande e capaz de muito mais do que pautar sua justiça na vigilância, na punição e no racismo. A caminhada é longa, mas precisamos pensar em outro futuro possível, que passa por abandonar a noção de que limites ao poder do Estado e segurança pública são ideias antagônicas.

Giovanna Preti é assessora de comunicação na Rede Justiça Criminal, coalizão de nove organizações que luta para reverter a lógica do encarceramento em massa e por um sistema de justiça que não viole direitos humanos

Leonardo Santana é assessor de Advocacy