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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A arte e Kairós ludibriam a morte e o tempo

Laura Tomé

07/03/2021 04h00

Já não é de hoje, mas tenho estranhado muito o tempo. A silhueta dos dias está sumindo com a imprecisão dos meses. Você também sentiu? Olha, me aconteceu algo que tem a ver com isso e acho que você pode gostar de saber. Esse texto é fruto de um convite repentino que me foi feito numa quinta-feira à tarde. Precisava estar pronto na sexta-feira de manhã. Tomei um susto com a proposta.

Enquanto pensava sobre o aceite, olhei pela janela. As nuvens em chumbo corriam prontas para desabarem o céu.

Mas não eram só elas que estavam com pressa. Quando desci os olhos pela paisagem, vi que passava correndo na nossa rua, Kairós.

Kairós é uma das figuras que o tempo usa para se manifestar. Foram os gregos antigos quem descreveram esse deus. Ele corre nu e seria completamente calvo se não fosse por sua enorme mecha loura que nasce onde termina sua testa. Pelo seu comprimento, a madeixa esvoaçante de Kairós é a única coisa que dá tempo de pegar enquanto ele corre com suas sandálias de asas.

Imediatamente saí da janela e corri até a rua. Abri a porta em desespero, quase desabei dos degraus, pulei o portão e desci com pijama florido no meio do asfalto. Kairós já chegava na curva da esquina quando agarrei sua enorme mecha dourada.

E a chuva desabou sobre nós. Soltei os cabelos do deus para que ele pudesse correr em outras encruzilhadas.E ele sumiu.

Bastou o caminho de volta para dentro de casa para ficar completamente ensopada.Com um fio de cabelo louro nas mãos,voltei para aceitar a proposta.

Kairós é o deus da oportunidade, dos bons ventos. Passa correndo diante dos nossos portões. Ele é o único deus capaz de alvoroçar a rigidez do tempo ordenado pela sua outra face, Chronos.

Quando Kairós passa, não há cronologia que suporte: É aquela vertigem que o tempo sofre quando vivemos anos em um segundo. Quando muitas horas passam como a tempestade que desabou há pouco.

Outra manifestação que os povos antigos entendem como divindade é a morte. Dizem que ela anda entre nós e muitas vezes resolve se hospedar nas nossas aldeias. Ela é descrita como tão ordenada e irredutível quanto Chronos,e faz sentido pensá-la assim.

Parece que eles se juntaram, de um ano pra cá. A austeridade dessa dupla é visível em qualquer telejornal: ambos desconsideram nosso padecer.

Mas aí é que temos, para abrir frestas nesse concreto da existência, a Arte, que é um jeito de chamar Kairós pra perto. Atrevo-me a dizer que ela também é uma deusa e os dois se encontram às vezes. Ela é capaz de enganar a morte. Existe um mito Iorubá que conta sobre o dia em que a morte - em sua face chamada Iku - resolveu instaurar-se num povoado e dizimá-lo. Foram crianças tocando tambor que a dispensaram. Tocaram e cantaram de um jeito tão lúdico que Iku não pode resistir e dançou junto. Brincou tanto que não teve disposição para matar mais ninguém.

Foi embora.

Precisamos nos cuidar, ficar em casa. Pensar naqueles que estão vulneráveis. Fazer escolhas mais justas de representantes. E precisamos abrir brechas no tempo. Quando ao nosso redor o desamparo da doença acomete a matéria, a arte é o despertar do pesadelo da morte.

Com o fio de cabelo dourado eu amarro o tempo nas linhas desse texto: se ao menos no intervalo dessa leitura você encontrou com Kairós, foi a arte que te visitou pelas janelas cibernéticas.

E nesse contexto que o próprio Chronos anda confuso, podemos contar com ela. A arte afasta a presença da morte e devolve o nosso bem mais precioso: o anseio pela vida.

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Laura Tomé, contadora de histórias e pesquisadora
Imagem: Acervo Pessoal