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REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

O trabalho emocional das pessoas negras

Luana Pereira

16/12/2020 04h00

Aqui posso escrever sem tanto compromisso acadêmico. Posso ousar mobilizar um conceito que eu não conheço tão profundamente em suas nuances teóricas, mas que sinto firme no meu peito.

Na sociologia, ainda nos anos 1980, surgiu a provocação de que as mulheres desempenham um trabalho emocional invisibilizado, mas que nos suga uma boa carga de energia diária. Esse trabalho consistiria em fazer uma gestão de emoções e tarefas nas nossas relações afetivas, nos nossos lares e, também, em nossos ambientes profissionais.

Lembrar do aniversário de fulano, saber que o feijão está acabando, mediar um conflito no emprego, perceber a necessidade de uma DR e propô-la, esforçar-se para ser gentil e agradável, acreditar que o cuidado é uma tarefa natural feminina. Todos são aspectos do trabalho ou da carga emocional que acertadamente vem sendo apontada pelo movimento feminista como fonte de estresse para mulheres.

Desde o assassinato de George Floyd e a necessária repercussão que o caso tomou, sinto que eu e outras pessoas negras nos sentimos mais cansadas que o habitual. As manchetes são duras e a cor das mortes é constantemente negra. Cada vez mais vídeos de execuções de pessoas negras são exibidos desavisadamente em nossas redes sociais e nas mídias. Em nossos espaços de socialização, somos instadas a expressar nossa indignação. Não raro somos naturalmente identificadas como conhecedoras da "causa negra" e nos solicitam materiais de estudo e/ou explicações sobre o porquê de mais uma manchete estampar um caso de racismo.

Nos ambientes profissionais, somos obrigadas a relevar situações discriminatórias e incentivadas a educar nossos pares, que nem sempre nos são gentis. Nas mídias e nas redes sociais, sempre há os que desdenham dos casos de discriminação. Os corpos dos nossos mortos sequer esfriam, antes que abutres busquem em seu passado algo que justifique a pena de morte aplicada. E vamos ficando cansadas.

George Floyd foi morto asfixiado por policiais nos EUA, aos olhos do mundo. Ágatha Félix, de 8 anos, foi baleada em operação policial. Miguel, de 5 anos, morreu após cair do 9º andar do prédio em que sua mãe trabalhava, quando ficou aos cuidados da patroa desta. João Alberto foi morto por seguranças da rede de supermercados Carrefour. Emily (4 anos) e Rebeca (7 anos) também morreram em razão de "balas perdidas" durante operação policial - balas que embora perdidas, sempre acham corpos negros. Jane Beatriz morreu em Porto Alegre durante abordagem policial desastrosa no bairro Cruzeiro.

Nossas mortes não são recentes. Julio César foi morto pela Brigada Militar em 1987, em Porto Alegre, ao ser "confundido" com um assaltante. Sua história foi transformada em documentário, produzido por Camila de Moraes e Mariani Ferreira, chamado "O Caso do Homem Errado".

Dá um peso no peito. Uma sensação de impotência. De intransponibilidade dessas estruturas que nos esmagam. A gente pensa: e se fôssemos nós? E se fosse nossa filha? E se fosse nosso amigo? A gente tenta se blindar, justificando nossas próprias histórias para afastar a possibilidade de ser capturado pela máquina de moer gente. Para uma ínfima parcela da população negra que alcançamos alguma ascensão social, pode surgir a sensação de que não somos o alvo das políticas de morte. De fato, não somos o alvo preferencial.

No entanto, o que a realidade nos mostra é que isso não é determinante. Gustavo Amaral, engenheiro, foi morto durante ação policial no RS após ser "confundido" com um suspeito. Marielle Franco, vereadora, foi assassinada em circunstâncias que até hoje não foram efetivamente elucidadas. Eduardo Vinícius Fösch tinha 17 anos, em 2013, quando morreu em um condomínio de luxo da Zona Sul de Porto Alegre, onde participava de festa promovida por seus amigos. A família até hoje luta para provar que não foi um acidente. Engana-se quem pensa que a ascensão social é suficiente para aplacar a discriminação racial. No cotidiano, sabemos que somos apenas mais um corpo negro, potencial alvo.

Fico pensando se isso também não é um trabalho emocional, invisibilizado e não reconhecido, de gestão das relações raciais brasileiras. Ao assistir a ataques racistas brutais, somos coagidos a nos manifestarmos e solicitados a educarmos nossos pares. Esses são exemplos de efetivos trabalhos que nos sugam tempo, energia e saúde mental. Essa carga emocional é invisibilizada nas nossas relações de afeto e profissionais. Não há reconhecimento, tampouco remuneração. Estamos estressados e cansados em razão de um ambiente que nos demanda a gestão de emoções, nossas e de terceiros, provocadas por situações de discriminação.

Não é novidade que o racismo é uma das determinantes sociais de saúde. O campo da psicologia reconhece que traumas e estresses provocados por sucessivas situações de discriminação ecoam na saúde mental das pessoas negras, através de robustas pesquisas. De fato, segundo dados de levantamento realizado pela Universidade Federal de Brasília em parceria com o Ministério da Saúde, a cada 10 jovens que se suicidam no Brasil, 6 são negros.

Além disso, me questiono: qual o custo do trabalho emocional que pessoas negras vem desempenhando para gerir as desvantagens das relações raciais brasileiras? De que forma podemos minimizar os impactos dessa carga invisibilizada no nosso cotidiano? São perguntas que me inquietam e que não me comprometo a trazer respostas.

No entanto, assim como o trabalho emocional das mulheres foi mais debatido a partir de sua visibilização, é urgente e fundamental que passemos a refletir sobre a carga mental que estamos, enquanto sociedade, depositando em pessoas negras, bem como sobre a nossa responsabilidade em compartilhá-la.