Topo

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Pode a Educação transgredir a cisnormatividade?

TransEnem - Gabriel Viero/Divulgação/TransEnem
TransEnem Imagem: Gabriel Viero/Divulgação/TransEnem
Caio de Souza Tedesco

15/12/2020 04h00

Dialogar sobre gênero, sexualidade e educação, para mim, é sempre partir de dois lugares aparentemente antagônicos: primeiro, de pessoa trans; segundo, de professor. Denomino antagônicos, considerando os poucos dados que temos sobre a população trans, sua escolarização e seu acesso à educação no Brasil.

Conforme a pesquisa realizada pelo Grupo Cultural AfroReggae, no projeto Além do Arco-Íris, no Brasil apenas 0,02% da população trans está na Universidade, 72% não possui o Ensino Médio completo e 56% nem concluiu o Ensino Fundamental. Esses índices são alarmantes, mas, infelizmente, não são surpreendentes para o país que mais mata pessoas trans e no qual nossa expectativa de vida é de apenas 35 anos, de acordo com a organização por direitos humanos Transgender Europe e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), respectivamente.

Por tais motivos, desde 2015 projetos e coletivos de Educação Popular voltados para a população trans (mulheres e homens transexuais, mulheres travestis, transmasculinos e pessoas não-binárias) surgiram em vários estados do país. É o caso do PreparaNEM (Rio de Janeiro), do Transpassando (Ceará); do PreparaTrans (Goiás) e do coletivo no qual atuo como professor de história há quase seis anos, o Coletivo pela Educação Popular TransENEM de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Foi através desta experiência que passei a compreender melhor o que significa ser trans em meio ao cistema (com C mesmo, em alusão ao cissexismo e à cisnormatividade) e a partir da qual me permiti vivenciar minha própria identidade de gênero, pois sou um homem trans. Posso afirmar que no TransENEM tive abrigo antes mesmo de ter nome.

Além disso me deparei, e sigo me deparando, com questionamentos pertinentes para toda e qualquer pessoa que aposte na educação como um direito humano, como um campo potente para imaginar e criar outros mundos possíveis — mundos nos quais nós, pessoas trans, possamos existir sem nos preocuparmos em resistir.

Como é possível, no campo da Educação, combater a transfobia? Pode a Educação transgredir à cisnormatividade? Como a Educação pode subverter essa ordem social hierarquizante e desumanizadora?

Para quem é a escola? A aluna, o aluno, e alune trans pode frequentá-la sem medo? Nós, pessoas trans, evadimos ou somos evadidos/as/es?

A escola tem medo do/a/e aluno/a/e trans? Por quê? O que nós, professores, professoras e professories temos a ver com isso? Qual nosso papel enquanto educadores/as diante dessa realidade?

Essas não são perguntas simples de serem respondidas, nem há um manual de instruções que possa elucidar os caminhos pelos quais educadoras, educadories e educadores deveriam seguir. Todavia, a compreensão de alguns fatores nos ajudam a refletir sobre quais passos tomar.

A relação entre gênero, sexualidade e educação é (ou deveria ser) inquestionável. Conforme Guacira Lopes Louro explica, a escola pode ser um local de manutenção ou transformação da ordem social vigente ou de subversão. Trata-se de lugar de disputa entre conservadorismos, resistência e subversão, no qual não se discute apenas matemática, português, história, pois as normas sociais estão em jogo nessa instituição. As famosas filas separadas por gênero, bem como os uniformes, são bons exemplos disso.

Dessa forma, volto a questionar: quem tem o direito de frequentar a escola? O que essa instituição diz quando proíbe um(e/a) estudante de utilizar os banheiros? O que está, não implícito, mas explícito, na recusa em reconhecer e tratar um(a/e) discente por nome e pronomes corretos, de acordo com a sua identidade de gênero? Qual a mensagem trazida no silêncio, no silenciamento e na omissão de direção, funcionários/as e professores/as diante dessas e outras agressões?

Isto podemos chamar de cisnormatividade, pois são recursos de manutenção e normatização da cisgeneridade enquanto performance única e natural de gênero. Também podemos denominar como uma espécie de transfobia ou cissexismo institucional, tendo em vista que são violências cometidas contra um grupo específico de pessoas que compartilham um marcador social da diferença em comum: ser trans.

Ademais, esses casos demonstram como espaços de educação formais reproduzem e produzem hierarquizações e desumanizações: algumas vidas valem mais que outras, algumas existências são mais verídicas e respeitáveis que outras. Será que a cisgeneridade é tão frágil a ponto de promover essa institucionalização da transfobia? Não tenho dúvidas de que sim. A escola realmente tem medo de estudantes trans, porque nossos corpos falam por si frases temerosas à cisgeneridade: gênero é fabricado e fabricável, é fruto de processos sociohistóricos, o que realmente é natural é a diversidade.

Em Corpos que Importam, Judith Butler elucida que a compreensão contemporânea de "humanidade", de quem é "humano", necessita do "inumano" para existir. É nesse lugar que nos encontramos, ou melhor, que tentam nos colocar. Às margens da sociedade, nas ruas, na noite, em não-lugares escondidos o suficiente para manter a falsidade do que é fabricado como natural, porém perto o suficiente para que o pretenso único Eu tenha esse pretenso Outro (que também é Eu) como fundante de si.

Ao meu ver, é dever de tode/a/o e cada educador(a/ie) e professor(a/ie) romper com isso. Afinal, não é a educação um direito humano? Por mais que a cisnormatividade e o cissexismo tentem nos desumanizar, nós somos humanos quer vocês queiram ou não. Estamos aqui, após séculos de tentativas de apagamento promovidos, como elucida Viviane Vergueiro, pelo ciscolonialismo. Seguiremos aqui. Não nos calamos e nem vamos nos calar. Clamamos, reclamamos, lutamos pelos nossos direitos e conquistamos. Transgredimos o cistema.

Contudo, não basta apenas nós nos comprometermos com esta causa, este comprometimento deve ser coletivo em termos amplos. Retornamos à pergunta: pode a Educação transgredir à cisnormatividade? Iniciativas como o TransENEM revelam que sim, pois apostamos no respeito e no acolhimento, buscamos criar entre nós o que bell hooks denominou comunidade de aprendizado.

Isto só é possível quando reconhecemos as relações de poder nas quais estamos imbricados e buscamos estabelecer vínculos de confiança e afetividade que transgridem hierarquizações e violências naturalizadas. Ações simples como respeitar nome e pronomes de acordo com a identidade de gênero autopercebida e não tornar a ida ao banheiro um empecilho nocivo à saúde destes estudantes são parte disto. Porém, é imprescindível romper com as dicotomias do "normal e anormal", "saudável e doente", "coisa de homem e coisa de mulher". Ademais, educadoras e educadores cis precisam urgentemente ler e escutar pessoas trans, aprender conosco.

Volto a afirmar, não há manual, mas será tão complicado assim reconhecer a humanidade no outro? Por isso, repito, educação é um direito humano. Logo: se pode a Educação transgredir à cisnormatividade? Pode e deve.