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REPORTAGEM

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Não é fácil, mas só volto para a aldeia com diploma na mão

Hamangaí Marcos é membra da Rede Pelas Mulheres Indígenas - Arquivo pessoal
Hamangaí Marcos é membra da Rede Pelas Mulheres Indígenas Imagem: Arquivo pessoal
Hamangaí Marcos

02/12/2020 04h00

A minha vinda para a cidade se deu com dezenove anos, e isso me causou uma estranheza danada. Senti muito medo e insegurança pelo desconhecido que encontraria pela frente. Vejo que essa situação coloca todos nós, indígenas, em constante luta pela nossa vida, pela nossa voz, espaço e direitos e pela autoafirmação enquanto povo, não número.

Essa tem sido a minha realidade e a de muitos jovens indígenas que saem dos seus territórios para adentrar a universidade. Quando uma jovem mulher indígena ocupa o espaço urbano, ela também percebe que a cidade não foi feita pra ela e que será constantemente questionada se é ou não "índia de verdade". E talvez este seja um dos primeiros exemplos de violências, o preconceito que enfrentamos em nosso dia a dia morando na cidade, seguido pelo racismo institucional, a invisibilidade, a criminalização e a hipersexualização dos nossos corpos.

Nossa chegada à cidade incomoda certas pessoas, mas a sociedade e, principalmente, essas pessoas racistas precisam entender que todo este chão em que pisamos é território ancestral e todas essas cidades foram construídas com sangue de indígenas e de pessoas negras escravizadas.

É preciso afirmar também que existem aldeias urbanas e que, nem por isso, deixaram de ser povo indígena ou deixaram de dar continuidade a suas culturas, hábitos, crenças e tradições, servindo até de exemplo de como isso também perpassa pela contemporaneidade. Vejo que as aldeias indígenas são um grande exemplo para todas as cidades para que só assim tenhamos de fato um progresso pelo Bem Viver, por um mundo mais sustentável e pela vida das futuras gerações.

Viver em comunidade é viver em coletivo, é respeitar as diferenças. É aprender e ensinar com todos ao seu redor e com a natureza. Poderia vir aqui falar sobre vários outros temas, mas hoje resolvi mergulhar para dentro de mim, revelar certos incômodos, sonhos e memórias que partem de minha própria experiência vivendo atualmente na cidade.

Cresci amando catar joaninhas. Hoje, cato sonhos. E são esses sonhos que me inspiram e me põe em movimento na cidade todos os dias.

Assim como outros jovens universitários indígenas, estou no contexto urbano com um propósito e compromisso com a minha comunidade. Não é nada fácil, mas só volto para a aldeia com meu diploma na mão.

As perdas e dores com a chegada da pandemia me fizeam repensar o quanto foi necessário até aqui o nosso processo diário de nos reinventarmos e reencontrarmos. Esse "reencontrar-se" não significa que estávamos perdidos, mas diz respeito a novas possibilidades de descobertas, afetos, amores, partilhas e lutas.

Na aldeia, tudo é coletivo. O banhar no rio, o roçado, a farinhada, os rituais. Enfim, o nascer, crescer e morrer são vividos e sentidos de forma coletiva.

Me assusta e me estranha saber que nem todos têm essa visão ou nunca tiveram a oportunidade de sentir a chuva cair sobre si sem precisar correr dela como se fosse algo ruim.

Quando passamos a morar na cidade, surge todos os dias a necessidade de se conectar de uma forma mais íntima com a mãe terra e com a nossa ancestralidade, pois são elas nossa cura e nosso refúgio.

Nossa chegada no contexto urbano perpassa pelo período da ditadura, quando várias famílias indígenas foram expulsas de suas aldeias, perpassa pela negação do território e pela necessidade de buscar melhorias para nossa comunidade por meio dos estudos.

Apesar de todos esses desafios, nosso corpo é a extensão dos nossos territórios e seja onde for ou onde estivermos a aldeia nunca sairá de dentro de nós .

Aproveito o momento para afirmar o quão urgente é a demarcação das terras indígenas no Brasil e da importância de dizer "Não ao Marco Temporal", pois nossa história não começa em 1988. Queremos ter nossos corpos respeitados seja na aldeia, na cidade ou na universidade. Que as mulheres e meninas indígenas tenham o direito de viver seguras e, por isso, suplicamos e exigimos Justiça por Ana Beatriz, criança indígena de cinco anos do povo Sateré Mawé que foi raptada, estuprada e morta no último final de semana em Barreinha (AM).