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REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Precisamos falar sobre os impactos das mudanças na dieta brasileira

Consumimos 2,45 bilhões porçoes de macarrão instantâneo em 2019 - iStock
Consumimos 2,45 bilhões porçoes de macarrão instantâneo em 2019 Imagem: iStock
Mariana Inglez

29/11/2020 04h00

Em agosto deste ano nos surpreendemos com as notícias sobre nossa 10ª posição no ranking mundial de consumo de macarrão instantâneo, ou nosso conhecido Miojo. Criado por Momofuku Ando que buscava um alimento prático e barato para oferecer ao público em um mundo pós 2ª Guerra Mundial, no Japão, essas características também foram atrativas aos brasileiros de hoje. Com nossas 2,45 bilhões de porções consumidas em 2019, perdemos apenas para os líderes de consumo na Ásia, como China (com 41,45 bilhões de porções consumidas), Indonésia (12,52), Japão (5,63) e Vietnã (5,43) e nas Américas, apenas para os Estados Unidos (4,63).

Infelizmente, estar entre os dez mais nesse pódio não é motivo para comemorações. O miojo faz parte do grupo de alimentos conhecidos como ultraprocessados, ou seja, aqueles que passam por diversas etapas e técnicas de processamento e normalmente são produzidos por indústrias de grande porte. Como característica comum aos ultraprocessados observamos muitos ingredientes derivados de substâncias extraídas de alimentos "de verdade" ou substâncias sintetizadas em laboratório (como conservantes, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos usados para deixar esses produtos atraentes e viciantes).

Ainda é importante dizer que esses alimentos são menos ricos em nutrientes, tem maiores quantidades de açúcares e gorduras e que portanto, estão diretamente relacionados com o aumento das chamadas doenças crônicas, que não podem ficar de fora dessa história.

As ditas doenças crônicas (tais como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e câncer) resultam de uma combinação de aspectos mas a má qualidade da dieta é o seu principal fator de risco. O foco mundial tem se voltado para o entendimento dessas doenças e para sua prevenção, uma vez que são responsáveis pelo equivalente a 71% de todas as mortes no mundo.

Essa morbidade tem impactado desproporcionalmente países de baixa e média renda, atingindo principalmente populações mais pobres, com menos acesso à educação e em vulnerabilidade socioeconômica, o que também significa menor acesso à assistência médica. No Brasil, é indispensável encarar que a vulnerabilidade socioeconômica atinge especialmente comunidades tradicionais e periféricas, e as populações negras e indígenas.

Para fechar o cenário atual, nesse ano de 2020 pudemos observar os impactos agravados da pandemia e a maior mortalidade pela Covid-19 entre essas mesmas populações em maior risco e já com maiores índices de doenças crônicas.

É justamente nesse contexto que temos observado os ataques ao nosso Guia Alimentar, com propostas de alterações que vão na contramão do que se tem discutido pela comunidade científica das áreas de medicina, nutrição e biologia humana.

Olhar para a alimentação implica abordagens bio-sócio-culturais uma vez que a origem e a qualidade dos alimentos que consumimos está diretamente relacionada com aspectos socioeconômicos e culturais (por exemplo se considerarmos poder de compra ou até mesmo gostos e simbologia associada ao consumo de alimentos específicos), além da disponibilidade de recursos no ambiente. Da mesma maneira, esse olhar precisa ser holístico em relação aos impactos da produção de alimentos tanto pensando em saúde e qualidade de vida humana, quanto em justiça socioambiental.

O Guia Alimentar para a população brasileira que faço questão de indicar a leitura, tem sua edição de 2014 gratuita para download e traz em uma linguagem acessível e inovadora, orientações para uma dieta de qualidade. A partir da consideração de alimentos tradicionalmente consumidos no Brasil, o Guia ressalta em diferentes trechos a importância de priorizarmos o consumo de alimentos frescos ou in natura, tais como frutas, legumes, verduras, tubérculos e grãos, traçando paralelos diretos com práticas socialmente mais justas, como a agricultura familiar e o incentivo a economias locais.

Traz ainda discussões importantes sobre porque considerar a redução do consumo de carne pensando no estresse físico ambiental, já que a produção extensiva de alimentos de origem animal está diretamente relacionada com emissões de gases de efeito estufa (responsáveis pelo aquecimento do planeta), o desmatamento decorrente da criação de novas áreas de pastagens e o uso intenso de água.

Lendo o Guia com atenção, o quebra-cabeças vai se encaixando. Em tempos de nítido desmonte de políticas ambientais e de descaso do Estado em relação a preservação de nossos biomas e biodiversidade, assim como de descaso com a saúde pública, compreende-se o porque da insistência de representantes do governo atual em alterá-lo.

Se entre a população com maior poder econômico a pandemia tem possibilitado a aquisição de práticas nutricionais mais saudáveis e reeducação de hábitos alimentares, o oposto tem sido observado para as camadas mais vulneráveis. Além da insegurança alimentar, o consumo de comidas ultra processadas entre os menos escolarizados têm aumentado e merecem nossa atenção.

Acredito que registrar as mudanças em nossa dieta é importante, assim como defender políticas públicas para enfrentar a insegurança alimentar e o acesso a alimentos saudáveis, assim como para educação sobre alimentação Nesse mês de novembro, é importante refletir sobre as desigualdades raciais em nosso país, que se expressam inclusive na alimentação e saúde humana.