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REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

As instituições e a erosão democrática no Brasil

Cláudio Gonçalves Couto

15/09/2020 04h00

Às vésperas do dia da democracia foi divulgado pela imprensa mais um ranking de mensuração do grau de democracia em diversos países, dentre eles o Brasil. Para além de apenas situar cada país num lugar dessa escala, o estudo Democracy Matrix, da Universidade de Wurtzburgo, na Alemanha, aponta para uma melhora e/ou piora de diferentes regimes ao redor do globo. Quanto a isso, indica uma clara tendência à desdemocratização, a qual afetaria também o Brasil.

Há uma série de percepções questionáveis no estudo, sobretudo quando se conhece a realidade de alguns dos países e se vê sua posição relativa no ranking. Por isso, se eu fosse aqui discutir o próprio estudo, caberia levantar uma série de questionamentos sobre ele, o que não pretendo fazer agora. Antes, parece-me apenas oportuno observar que esse é mais um, dentre diversos trabalhos, que detecta uma recessão democrática, nos termos de Larry Diamond.

A forma dessa recessão, como também apontam outros estudiosos (Levitsky, Ziblatt, Runciman, Mounk, Finchelstein, Mudde) é menos a do colapso brutal dos golpes de Estado e mais a da lenta erosão das práticas e instituições no dia a dia. Com isso, regimes democráticos são fragilizados de forma continuada, sem que isso seja evidente a cada novo ataque. Recorrendo a uma analogia, mais do que mortíferas mordidas de serpente, o que envenena a democracia são apenas sutis picadas de inseto; isoladamente, poucos danos provocam, mas quando repetidas continuadamente, tendem a assumir um efeito maléfico.

Uma das dimensões traiçoeiras desse processo corrosivo é justamente a dificuldade de identificar em seu curso algo que seja efetivamente digno de preocupação. No máximo, enxerga-se o incômodo de atitudes hostis ou grosseiras, de retóricas inflamadas, de voluntarismos improdutivos. Por isso mesmo, o mantra dos otimistas tem sido o de que as instituições estão funcionando e, com isso, contendo eventuais vocações autoritárias.

De fato, seria um erro supor que as instituições simplesmente não estejam funcionando, já que efetivamente têm contido arroubos de lideranças e movimentos políticos autoritários. Contudo, talvez devamos nos perguntar a que preço e por quanto tempo. Para recorrer a nova analogia, impor aos freios institucionais uma contínua e interminável série de desafios é como descer a serra com o pé no breque por todo o tempo: ao se chegar à planície, corre-se o risco de não conseguir parar o veículo. O acidente, portanto, não decorrerá do fato de que os freios não estavam funcionando, mas de que foram usados à exaustão, até se tornarem ineficazes.

Essa é a tônica de diversos governantes populistas mundo afora, seja à direita (como na Hungria, Turquia ou Polônia), seja à esquerda (como na Venezuela, Equador ou Nicarágua). Num dia, esvaziam-se os poderes de governos subnacionais em que a oposição foi eleita; noutro, politiza-se o sistema de justiça com juízes e promotores de viés partidário; noutro, constrange-se a imprensa, negando a renovação de concessões, sufocando financeiramente, intimidando ou censurando sob alegações juridicamente torpes; noutro, fazem-se seguidos plebiscitos sob a alegação de alargamento democrático, mas com o fito de esmagar minorias políticas, aproveitando-se de marés de popularidade. A lista é longa, mas o sentido é sempre o mesmo: inviabilizar ou deslegitimar a oposição e a crítica, fragilizar controles, concentrar poder.

No Brasil, a vocação do governo Bolsonaro nessa direção é bastante clara. Se olharmos apenas para o que ocorre no âmbito do Poder Executivo veremos o desmonte de estruturas burocráticas construídas por gerações de gestores públicos; a descontinuidade administrativa; o constrangimento e a perseguição a servidores que - ao cumprir seu papel funcional - simplesmente seguiam o que a lei mandava; o desvirtuamento da finalidade de órgãos governamentais, o abuso do poder de decreto; a desregulamentação desenfreada que produz o caos.

Pode-se visualizar isso, por exemplo, nas áreas da cultura, da educação, do meio ambiente, da ciência e tecnologia, na política externa. O que é senão ataque à democracia a perseguição aos fiscais do Ibama que apenas cumprem seus deveres legais? O que significa transformar um órgão como a Fundação Palmares, voltada à memória do movimento negro do Brasil, num espaço de detratação desse mesmo movimento? O que implica montar dossiês para investigar servidores antifascistas por suas orientações ideológicas? O que representa criar entraves burocráticos à estreia de um filme sobre um personagem de quem o presidente da República não gosta? O que quer dizer a ameaça a servidores da saúde com base na Lei de Segurança Nacional, caso informações incômodas para o governo cheguem à imprensa? Como explicar o castigo a diplomatas que seguem a orientação constitucional de nossa política externa, ou o aparelhamento da Fundação Alexandre Gusmão pela agenda Olavista? Esses são apenas alguns exemplos do que ocorre quase todos os dias no atual governo.

Essa repetição diuturna de abusos obriga a reação reiterada dos demais poderes, órgãos de controle e entes da sociedade. Tempo e energia que poderiam se dedicar a ações construtivas por parte desses atores precisam ser desviados para por freios aos excessos intermináveis do governo e de seus apoiadores na sociedade. Sai-se da dinâmica normal das democracias (com suas crises eventuais) para se entrar num turbilhão diário de ações voltadas à contenção. Não bastasse a fadiga que isso impõe aos atores institucionais, tal dinâmica fomenta uma crescente radicalização da polarização política, reduzindo o espaço para o diálogo e para a busca de consensos, elementos que - combinados à competição - são indispensáveis para o jogo democrático.

Em vez disso, a radicalização mina a cada dia o campo dos valores e princípios comuns, envenenando o ambiente e elevando os custos da tolerância em relação aos adversários políticos. Essa, aliás, parece ser mesmo a aposta dos populistas mundo afora, Bolsonaro incluso.

Agora, acuado por investigações que chegam à sua família, Bolsonaro busca um entendimento com os partidos de adesão no Congresso (o Centrão), menos porque vê aí o espaço para produzir consensos democráticos e mais porque tem nessa tática um esteio que lhe permita resistir às investidas judiciais, retomar o fôlego e, novamente, partir para o ataque. Não se trata, portanto, de negar que as instituições funcionem, mas de notar que seu uso abusivo pode torná-las não só ineficazes, mas ilegítimas e, consequentemente, descartáveis. E, com o descarte de suas instituições, joga-se fora também a democracia.