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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Jornalismo só será de verdade quando pretos e pretas participarem dele

Pedro Borges

28/07/2020 11h00

Tem jornalista e empresa de mídia que ainda defende, em pleno 2020, que o jornalismo é neutro e imparcial. Na segunda década do século 21, o difícil mesmo é encontrar grupo de comunicação que seja realmente objetivo e encare o jornalismo com a seriedade que precisa.

O trabalho do jornalista é um ofício técnico. Exige do profissional diversos procedimentos, como a checagem de dados, informações, e um panorama capaz de apresentar para o leitor a complexidade do mundo onde estamos inseridos. Isso se torna ainda mais necessário em um país que definitivamente não foi feito para amadores.

Complexificar o mundo exige que muitos saberes sejam levados em consideração, para além do conhecimento eurocêntrico, masculino, heteronormativo, e também conservador ou liberal. A diversidade, mais que possibilitar um jornalismo realmente objetivo, permite ao ofício ser mais do que "acompanhar o funcionamento das instituições" e de fato propor mudanças sociais.

É neste contexto que quero destacar cinco programas do "Roda Viva" que acompanhei, com os entrevistados Flávio Dino, governador do Maranhão (PCdoB); Natália Pasternak, microbiologista; Emicida, rapper; Fernando Haddad, professor; e Luís Roberto Barroso, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

O programa com o governador do Maranhão ficou totalmente pautado nas disputas presidenciais de 2022 e o cenário atual com Jair Bolsonaro (sem partido). Ninguém questionou Flávio Dino, durante uma hora de entrevista, sobre a concessão brasileira aos EUA para a utilização da base de Alcântara e a interferência abrupta disso na vida dos quilombolas. Enquanto um dos principais representantes da esquerda, Dino pouco se colocou ao lado dos quilombolas e nada topou enfrentar o governo federal sobre este ponto.

A pergunta, que certamente teria rendido e muito, viria para o centro do debate com a configuração de uma bancada mais preta. Não foi. Os quilombolas, a sociedade brasileira e qualquer possibilidade de democracia foram sabotadas por isso.

No outro espectro, quando Natália Pasternak foi a entrevistada, a jornalista e co-fundadora do coletivo Nós, Mulheres da Periferia, Semayat Oliveira, enriqueceu o debate. Foi dela que partiu a pergunta sobre a ausência dos dados raciais entre as vítimas da covid-19. Como enfrentar qualquer pandemia sem a prova de quem são os mais afetados? Digo "prova", porque todos sabemos que negros e moradores das periferias são as principais vítimas da doença.

Ainda no programa da microbiologista, Semayat Oliveira, uma jornalista preta, primeiro questionou a entrevistada sobre o problema da falta de testagem para o combate da covid-19. Até eu fui pego de surpresa. Pensei que ouviria, logo de cara na primeira pergunta, as palavras: preto, negro, racismo. Não ouvi e me tranquilizei. Que bom foi nos vermos ali também enquanto sujeitos universais, outro elemento fundamental para se avançar para uma democracia real.

O mesmo ocorreu durante o "Roda Viva" com Fernando Haddad, em que o jornalista e editor do UOL Flávio Costa estava na bancada. Perguntas importantes, pertinentes, nenhuma diretamente relacionada ao povo negro. Digo "diretamente", porque tudo está relacionado a nós, afinal, somos a maioria do povo. Flávio Costa foi, fez bem o seu trabalho e nos encheu de orgulho.

No programa com o rapper Emicida, a participação preta na bancada também fez eco. Foi a jornalista Adriana Couto, apresentadora do "Metrópolis", quem questionou o rapper sobre a música "Trepadeira", obra marcada pelo sexismo. Participando como representante do Alma Preta, fiz perguntas sobre meritocracia, o ataque às religiões de matriz africana e o movimento negro — pontos que talvez pouco fossem abordados, até mesmo com Emicida.

O programa com o rapper, independente da audiência, trouxe para o centro da discussão diferentes epistemologias. Foi bonito ouvir por diversas vezes Emicida citar nomes que todos nós deveríamos conhecer na escola, como a historiadora Beatriz do Nascimento (1942-1995), o sociólogo Clóvis Moura (1925-2003), o dramaturgo Abdias do Nascimento (1914-2011), a antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994), entre outros.

Os ricos saberes ancestrais e políticos do povo negro vieram à tona também com a filósofa Katiúscia Ribeiro, entrevistadora do ministro do STF Luís Roberto Barroso. Cada pergunta trazia contigo tanta referência que fiquei com a vontade de ver Katiúscia no centro da roda, sendo entrevistada. Em breve, se o país realmente avançar, isso acontecerá.

O jornalismo e programas como o 'Roda Viva' são elementos muito importantes para a democracia e precisam ser construídos em consonância com toda essa diversidade. Pluralidade que precisa ser comprometida com a superação das desigualdades e o fim do estado de barbárie onde estamos há tempos, há mais ou menos 500 anos.

Nesse processo, a jornalista Vera Magalhães tem cumprido um papel importante, de sair do lugar de conforto, dialogar, perguntar e trocar conosco. A expectativa é que mais jornalistas e entrevistados pretos participem do programa.

A lista de profissionais capacitados é extensa: Ronaldo Matos, Thais Siqueira, Gisele Brito, Lenne Ferreira, Débora Brito, Alane Reis, Jonas Pinheiro, Luís Adorno, Nataly Simões, Juca Guimarães, Flávia Ribeiro, Guilherme Dias Soares, Gabriela Coelho, Raull Santiago, e por aí vai. Definitivamente, não faltam são nomes e pessoas aptas a tornar o programa um ambiente mais rico.

O racismo e o lugar cômodo de jornalistas brancos, que se sentem satisfeitos em convidar apenas os amigos, são um problema para o jornalismo e a democracia. As provocações históricas negras e as pressões das ruas e redes sociais devem ecoar em programas como o "Roda Viva" para o bem de todos — em especial, nós pretos, mas não só.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.