Topo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A caminhada não termina no adeus

O ex-deputado federal e cofundador do Partido Verde Alfredo Sirkis (1950-2020) - Gustavo Lima/Câmara dos Deputados
O ex-deputado federal e cofundador do Partido Verde Alfredo Sirkis (1950-2020) Imagem: Gustavo Lima/Câmara dos Deputados
Mario Mantovani

15/07/2020 15h14

Alfredo Sirkis foi um herói real. Uma vida dedicada às boas causas coletivas se projeta como exemplo e mostra que não podemos esmorecer na defesa das agendas socioambientais.

Uma das cenas mais expressivas do filme "O Último Samurai" (Edward Zwick, 2003) mostra o imperador japonês Meiji perguntando a Nathan Algren (Tom Cruise) como seu conselheiro fiel, o samurai Katsumoto, havia morrido em combate. Ajoelhado, o capitão mira os olhos do imperador e responde: "Não vou contar como ele morreu, vou contar como ele viveu".

Fica a lição de que, por mais dolorida que seja a partida brusca de um grande amigo, seu exemplo de vida deve seguir nos acompanhando, nos inspirando, nos levando a cumprir nosso dever de cidadãos. Filho de imigrantes poloneses que, como tantos, vieram construir histórias num Brasil de cores políticas tão diferentes das atuais, Sirkis foi político, jornalista e escritor, mas antes de tudo um ambientalista.

As vozes de inúmeras lideranças multiplicam relatos sobre sua atuação. Agradecem por levá-los a entender que o capitalismo pode ser 'domado' pela escassez de recursos naturais, que a saúde dos ambientes naturais e das pessoas é uma só, que a militância socioambiental deve ser aguerrida e incansável, capaz de perturbar as estruturas de poder que comprometem nosso futuro no planeta.

Sirkis ajudou a fundar o Partido Verde, a construir a Rio92 e a eleger candidatos atentos à agenda socioambiental. É um dos pais das ciclovias cariocas, impulsionou inúmeros mutirões de reflorestamento. Foi vereador, secretário de Meio Ambiente e deputado federal, mesmo quando ambientalismo não dava voto.

Tentou a Presidência, em 1998, cujo mandato teria sido puro contraste com o que hoje testemunhamos. Honrou a diplomacia brasileira em encontros internacionais, entendeu e abraçou como poucos a agenda climática. Nessa rota, coordenou o Fórum Brasileiro de Mudança do Clima e, nos últimos anos, promovia a implantação do Acordo de Paris em 13 estados e a bioeconomia em tantos outros.

Os trabalhos da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional contaram sempre com suas contribuições. Já livre das amarras típicas dos ritos parlamentares e conhecendo como poucos os meandros da política, melhorava e acelerava processos. Não raro, colhia narizes torcidos por sua postura resoluta e proativa, focada na urgência que merecem temas tão estratégicos.

Em seu best-seller vencedor do prêmio Jabuti "Os Carbonários - memórias da guerrilha perdida" (1980), descreveu peripécias junto ao grupo Vanguarda Popular Revolucionária contra a Ditadura Militar. Também reconheceu que "Sinto-me a muitos anos-luz do guerrilheiro Felipe, com seus 19 anos e sua intrincada mescla de revolta e pulsão de ser herói, viver a aventura da nossa geração, que depois, como disse Alex Polari, se cortou com cacos de sonho. Não me desconforta esse passado, também não me enaltece".

Reviravoltas de uma intensa vida, seu livro mais recente se chama justamente "Descarbonário". Mais do que um aperto de mão com o passado, a obra-prima mescla biografia e eventos históricos para abordar, com a maestria de sempre, a crise global do clima. Ao mesmo tempo em que detalha o problemão causado pelo relacionamento tortuoso da humanidade com a natureza, leva aos leitores impagáveis episódios com personagens como Leonel Brizola, Fernando Henrique e Jair Bolsonaro. Não esqueceu de debater alternativas para a recuperação econômica pós Covid-19.

Num Brasil onde um governo eleito democraticamente teima em gracejar com regimes autoritários, dá de ombros à ciência, põe em xeque o equilíbrio econômico, manda às favas a liderança global do país na agenda socioambiental e aniquila com políticas públicas construídas com sangue e suor de tantas gentes, não podemos deixar que a liderança de Sirkis se torne um hiato. Sigamos ecologizando e descarbonizando, como ele gostaria.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.