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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A importância da visão sistêmica no combate à Covid-19

Cientista segura amostras de sangue de pacientes suspeitos de infecção pelo novo coronavírus - Ricardo Castelan Cruz/ Eyepix Group/Barcroft Media via Getty Images
Cientista segura amostras de sangue de pacientes suspeitos de infecção pelo novo coronavírus Imagem: Ricardo Castelan Cruz/ Eyepix Group/Barcroft Media via Getty Images

03/06/2020 04h00

Não é novidade para os tomadores de decisão que o mundo real é caracterizado por profunda complexidade, com implicações importantes na maneira como os problemas são modelados, tratados e solucionados. O novo coronavírus colocou à humanidade em um momento emergencial e excepcional, o que leva, logicamente, à necessidade de ações emergenciais e excepcionais.

Entretanto, a pandemia da Covid-19 é um exemplo claro de como os tomadores de decisão do mais alto escalão da sociedade e governos de vários países reagem e definem estratégias diferentes frente ao mesmo problema, resultando em diferentes níveis de resposta à pandemia.

Antes de mais nada, devemos entender que lidar com a Covid-19 significa entender a complexidade em lidar com dimensões incomensuráveis, riscos e incertezas, o que exige uma visão holística e sistêmica de todos os sistemas da sociedade, sejam sociais, econômicos, técnicos, logísticos e ambientais [1]. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é discutir a maturidade de resposta de alguns países frente à Covid-19 a partir da análise de seus Planos Nacionais de Contingência.

Como os países pensaram seus planos de contingência?

Como o risco associado à nova pandemia de coronavírus é sistêmico, exige-se um planejamento de contingência abrangente e sistêmico. Mesmo com recomendações claras da Organização Mundial da Saúde (OMS) acerca das estratégias de resposta, cada governo conduz seu próprio planejamento de resposta e contingência, muitas vezes não atendendo aos princípios-chave determinados pela OMS que garantiriam a abrangência e visão sistêmica das ações.

De acordo com o Guia da OMS para Planejamento de Contingência, dentre os princípios-chave que devem orientar o planejamento dos países destacam-se: ser prático, simples e de fácil execução, realístico e viável, baseado no uso eficiente e justo de recursos, orientado a processo para efetiva operacionalização, além de ser monitorado e atualizado.

Todos esses princípios dialogam com a complexidade do problema de decisão nos colocado pelo novo coronavírus.
Por exemplo, um planejamento prático, simples e de fácil execução converge à necessidade de mapear e considerar todas as partes interessadas (stakeholders) no problema de decisão. O plano de resposta à Covid-19 requer que os tomadores de decisão formulem estratégias claras e relevantes para todos os atores envolvidos. O Brasil, em seu Plano Nacional de Contingência ao novo coronavírus, apresenta com clareza as estratégias e medidas de resposta a cada setor da saúde envolvido, e recomenda que todas as orientações sejam consideradas pelas partes caso não haja consenso na tomada de decisão. A China vai mais além, ela apresenta medidas de resposta para serem tomadas por todos os níveis sociais.

O princípio realístico e viável é cumprido de maneira similar por vários países. Brasil, Alemanha, China, Austrália, Japão e EUA, por exemplo, adotam medidas gradativas com base em alguns parâmetros. O Plano de Contingência do Brasil prevê que cada medida seja proporcional e restrita aos riscos vigentes. Um ponto interessante considerado pelo Brasil é que os níveis de resposta sejam ajustados com base na disponibilidade das informações. De fato, as informações quando não são escassas são imperfeitas, levando a incertezas no processo de tomada de decisão frente à Covid-19. Esse princípio, portanto, é fundamental para que decisões adequadas à realidade sejam tomadas. A Austrália prevê revisão regular das estratégias à medida que novas descobertas sobre o novo coronavírus forem feitas. Japão considera, dentre outros parâmetros, a disponibilidade de recursos para realização das medidas.

O gerenciamento de recursos é claramente tratado de maneira diferente pelos países. Brasil, EUA e China, por exemplo, tratam da disponibilidade de recursos por meio do acompanhamento de estoques, sem mencionar a eficiência e equidade no uso. Já a Alemanha prevê a realização contínua de análise de riscos com relação à carga de utilização de recursos da saúde e uso racional de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs). Japão vai além em seu Plano Nacional de Contingência, quando considera também os fluxos logísticos de alimentos, sem contar os materiais do setor de saúde, evidenciando a clara visão sistêmica do problema em que diversas cadeias de suprimentos são potencialmente afetadas pela pandemia.

A visão orientada a processo para operacionalização do plano evidencia, de fato, o nível de maturidade dos países com relação ao problema de decisão. Brasil e Japão deixaram claro em seus Planos Nacionais de Contingência a ausência dessa visão, onde não há sequer evidência de fluxo de processo e inter-relação entre os atores/setores na condução das medidas e tomada de decisão. Inclusive são países que não são protagonistas em termos de publicações de artigos científicos em Supply Chain Risk Management (SCRM - Gestão de Risco na Cadeia de Suprimentos) [2]. Já os EUA e a Alemanha apresentam o passo a passo de cada frente de trabalho, indicando interação entre as fases de resposta proporcionais ao estágio de avanço do vírus no país. Estes países possuem um número relevante de publicações em SCRM e uma visão maior de protocolos de risco considerando cadeias de suprimentos.

Por fim, o princípio de monitoramento e atualização do planejamento de contingência é de extrema relevância quando se trata de problemas complexos não só pela possibilidade de aprendizagem como também pela melhoria contínua. Este último conceito muito bem conhecido e trabalhado pelas organizações mundo afora desde a década de 1970. O Brasil apenas apresenta em seu plano medidas de monitoramento dos casos da Covid-19 no país. Países como EUA, Austrália e Alemanha evidenciam a melhoria contínua das estratégias de resposta ao novo coronavírus através da revisão regular dessas estratégias e medidas e riscos associados.

Países se mostram em níveis diferentes de maturidade

Essa breve discussão sobre os princípios-chave da OMS para os planejamentos de contingência evidenciou que cada país está em um nível de maturidade diferente para lidar com problemas complexos como a Covid-19.

Dado que os Planos de Contingência têm o objetivo de descrever as medidas a serem tomadas em resposta à Covid-19, vimos que os países com bom nível de resposta à pandemia, como Japão, Austrália e Alemanha, são aqueles que trazem em seus Planos de Contingência a visão sistêmica do problema, sabendo da responsabilidade compartilhada pelas medidas de enfrentamento ao novo coronavírus, das incertezas e dos riscos e impactos nas cadeias de suprimentos, principalmente as da saúde.

A cadeia de suprimentos da saúde é ainda mais complexa, pois os elos que servem de interface com o "cliente" são clínicas e hospitais, onde os principais profissionais estão focados em gerar o melhor cuidado possível para o paciente e não possuem em suas formações básicas treinamento em técnicas de gestão. Neste sentido, como prever os recursos necessários? Produção e distribuição de EPIs de forma a viabilizar estes planos de contingência? A resposta passa pela urgente formação de equipes multidisciplinares em que profissionais da área de gestão possam identificar, avaliar e mitigar riscos em toda a cadeia, enquanto profissionais de saúde focam nos cuidados aos pacientes.

A Covid-19, portanto, coloca em evidência a importância de se adotar a visão sistêmica e holística na tomada de decisão. A nossa sociedade é formada por um conjunto de sistemas e subsistemas interconectados, formando uma rede complexa de partes interessadas como empresas, fornecedores, consumidores, trabalhadores, fornecedores de tecnologia, sociedade civil, instituições financeiras, instituições de saúde e de pesquisa, e governos.

*Colaboraram Luan Santos, Pedro Senna, Melissa Abreu, Glenda Dias, Brendha Werneck e Bruna Peixoto.

Referências

[1] Munda, G. (2008) Social Multi-Criteria Evaluation for a Sustainable Economy, Berlin Heidelberg: Springer-Verlag.
[2] SENNA, P. et al. Identificação de riscos em Cadeias de Suprimentos da saúde: Uma Revisão Sistemática de Literatura. In: ENEGEP, 2019, Santos, SP. Anais do ENEGEP, 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.