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REPORTAGEM

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O covid-19 reforça a desigualdade brasileira

Cidade de Deus registrou primeiro caso de Covid-19 - Folha Imagem
Cidade de Deus registrou primeiro caso de Covid-19 Imagem: Folha Imagem
Cláudia Werneck

22/03/2020 13h43

As pessoas só morrem de fato uma vez. Antes disso, podem até se sentir como se estivessem mortas, infinitas vezes. Não dá pra saber o impacto dessas mortes simbólicas na vida de quem continua vivo. Mas podemos tentar quantificar o dano de se estar vivo quando o mundo te considera morto. São estudos sobre a morte em vida. Fazem particular sentido hoje, dia 22 de março de 2020, quando acaba de ser noticiado o primeiro caso oficial de Covid-19 na Cidade de Deus, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, região com indicadores sociais críticos e quase 40 mil habitantes. A partir de agora, o rastro destruidor do novo coronavírus possivelmente vai na direção da pobreza e da miséria. É onde vivem mais de 80% da população com deficiência do mundo, diz a ONU. Não se sabe como o Covid-19 agirá. O vírus ainda não foi testado em um país com a extrema desigualdade social do Brasil.

Pessoas com deficiência vivendo na pobreza não são zumbis, mas, antes do vírus, com frequência já vinham sendo tratadas como se fossem. Agora, enquanto todos discutem o vírus, sua situação de morte simbólica só piora. Como se sentem diante da ambiguidade constrangedora de estarem vivas para si e suas famílias, mas mortas para noticiários, lives de profissionais de saúde e entrevistas com autoridades públicas sobre o novo coronavírus?

O direito à informação e à comunicação vale também para a população de pessoas com deficiência vivendo na pobreza. Querem se comunicar e opinar, e precisam tomar decisões para se proteger. Para sobreviver, precisam de informação. Mas quais vídeos, entrevistas ao vivo e lives têm audiodescrição, legenda descritiva e Libras? Estes são os recursos de acessibilidade comunicacional mínima garantidos pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, ratificada há bem mais de uma década por quase todos os países do mundo, incluindo o Brasil. Pior: nem a própria ONU tem cumprido a Convenção no que se refere à acessibilidade na comunicação.

Até as fake news decepcionam. Neste particular, estão até alinhadas com as reportagens sérias e a divulgação de pesquisas científicas. Textos de desinformação, reportagens e pesquisas científicas adotam idênticos critérios de exclusão. Nuas de acessibilidade, as fake news revelam que, assim como a comunidade científica e o jornalismo sério, não consideram como público quem não enxerga, não ouve, não sabe ler ou não entende a linguagem rebuscada dos meios de comunicação sobre como se proteger do Covid-19 e sua letalidade de proporções inimagináveis.

Diante de um desastre humanitário, como vivemos hoje, o hábito de se negar informação a quem não sabe ler, não consegue mais ler, não ouve e ou não enxerga por qualquer razão se mostra em toda sua morbidez. E ataca também crianças, idosas e idosos, pessoas com transtornos de saúde mental ou que, por conta de um acidente, não têm autonomia motora para ligar a televisão ou segurar telas de qualquer tamanho. A informação e a comunicação sustentam e protegem a conexão entre pessoas e grupos nas sociedades e por isso dão tanto poder. Estar sem acesso à informação é estar sem poder. É viver em desvantagem, é morrer todo dia, é viver se fingindo de morto. A sociedade da informação não tem registro de quem não se expressa. No início, não te dá informação. Em seguida, não quer a sua informação. Depois, não quer nem a sua opinião. Quem não é público-alvo da comunicação deixa de ser público.

Nas tragédias, o mundo repete com mais vigor o que ele já faz todo dia: mata. Por isso, a sobrevida nas grandes tragédias não tem sido apenas questão de sorte, saúde e riqueza. É também um desdobramento de decisões mais ou menos adequadas, tomadas em outros momentos, cujos efeitos se reforçam na crise. Quem não tem acesso a conteúdos que circulam entre outras pessoas da mesma sociedade e comunidade religiosa, de vizinhança, bairro ou família fica em vulnerabilidade crescente. O Covid-19 reforça essas vulnerabilidades, mas não as inventou. Fomos nós mesmos - com essa mania de matar todo dia.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.