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REPORTAGEM

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Coalizão Negra por Direitos e a denúncia internacional ao genocídio negro

Artistas voluntários fazem grafites em viela onde jovens foram pisoteados após ação da Polícia Militar, em Paraisópolis - José Vilson Vanderley
Artistas voluntários fazem grafites em viela onde jovens foram pisoteados após ação da Polícia Militar, em Paraisópolis Imagem: José Vilson Vanderley

Douglas Belchior, Fernanda Garcia, Glória Maria, Rosilene Torquato e Sheila Carvalho*

04/03/2020 04h00

Jenifer, Kauan, Kauã, Kauê, Ágatha, Kethellen, Denys, Gustavo, Marcos Paulo, Luara, Gabriel, Eduardo, Dennys Guilherme, Bruno e Mateus. O que esses nomes têm em comum? Todos correspondem a crianças e jovens assassinados em 2019, decorrências de ações policiais em comunidades do Rio de Janeiro e por ocasião do massacre de Paraisópolis, em São Paulo.

Não são casos isolados. Estima-se que quase três mil pessoas foram mortas por intervenção da Polícia Militar em 2019 apenas nesses dois estados (719, em SP, e 1810, no RJ). Concomitantemente também aumentou o número de pessoas desaparecidas, corpos que nunca foram encontrados.

Apesar do aumento contínuo e significativo da taxa de homicídios promovidos pela polícia, esses crimes são desconsiderados pelo poder público. Noventa e oito por cento das investigações são arquivadas sem instauração de processo. É essa realidade que nos leva mais uma vez a recorrer a espaços internacionais para cobrar respostas por essas mortes.

Neste dia 6 de março de 2020, em Porto Príncipe, capital do Haiti, uma comitiva da Coalizão Negra por Direitos, articulação nacional que envolve mais de 100 organizações e coletivos negros de todo país, estará diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu 175° Período de Sessões, denunciando governos destes estados e da federação pelo genocídio em curso contra a população negra no país. No grupo, representantes do movimento negro, das comunidades, e pessoas que tiveram seus familiares mortos pela ação policial. Ainda em março, também estaremos na 43ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra na Suíça, denunciando e cobrando a responsabilidade do Estado brasileiro por essas mortes.

Estamos transpondo as barreiras que sempre existiram para o movimento negro brasileiro acessar esses espaços e reforçando a necessidade de atenção internacional para um problema que a comunidade negra enfrenta a nível global: o projeto de genocídio negro.

Em 1951, um grupo de ativistas negros denunciaram os Estados Unidos perante a ONU pela violação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio pelo EUA frente ao genocídio negro estadunidense. Em "We charged genocide" ("Nós acusamos o genocídio", em tradução), o grupo apresentava às Nações Unidas as principais condições sociais, políticas, econômicas e culturais que matavam o povo negro.

O genocídio negro não se trata, portanto, apenas das balas diretas projetadas por agentes do Estado contra o povo negro. O genocídio negro também se sustenta em uma ausência de políticas públicas "que nos deixam morrer". Acusamos genocídio por conta da sistêmica exclusão econômica e social que priva negras e negros do devido acesso à saúde, educação, trabalho, representatividade política e outros aspectos básicos que impedem a vida, plena e sadia.

Hoje, quase 70 anos após essa histórica ação de incidência do movimento negro estadunidense, queremos trazer atenção à comunidade internacional de como esse genocídio segue ocorrendo e como afeta também os negros brasileiros.

Em 2019, a polícia dos Estados Unidos matou 897 pessoas em todo o país, menos da metade das mortes praticadas apenas pela polícia do Rio de Janeiro no mesmo período. Destes 897, 22% eram negros. Diferentemente do RJ, onde 80,3% dos mortos pela polícia eram negros, segundo levantamento do Instituto de Segurança Pública/RJ. Estranhamente, há sempre um destaque midiático ao racismo da polícia estadunidense, mas não ao mesmo racismo estrutural que move as ações da polícia daqui.

Há décadas denunciamos o genocídio negro no Brasil. Ainda em 1977, Abdias Nascimento apresentaria, em Lagos, Nigéria, no Colóquio do Segundo Festival Mundial de Arte e Cultura Negras, um ensaio de denúncia do mito da democracia racial e do drama do genocídio negro em nosso país. Mas o governo militar da época impediu o dramaturgo e ativista de representar o país no evento, substituindo-o pelo professor Fernando A. A. Mourão, que defendia teorias opostas.

Para além da nossa incidência internacional, este mês de março também marcará os dois anos da morte de Marielle Franco, a morte de uma vereadora negra de alta visibilidade que ainda não teve resposta. Há quanto tempo estamos gritando o que os nossos governantes não querem escutar? Por mais quanto tempo se farão de surdos e cegos à realidade do extermínio da população negra? Pelos jovens assassinados nomeados aqui, e por milhares de outros, 1 à cada 23 minutos no Brasil, levaremos nossa voz ao Haiti e Genebra para que esse massacre acabe.

*Douglas Belchior é professor formado em história pela PUC-SP, militante do movimento negro e membro fundador da UNEafro-Brasil;
*Fernanda Garcia é irmã de uma das vítimas do chacina de Paraisópolis;
*Glória Maria é produtora cultural na Batalha do Paraisópolis, jornalista e produtora audiovisual;
*Sheila Carvalho é advogada e defensora de direitos humanos;
*Rosilene Torquato integrante do Agentes Pastoral Negros do Brasil, do Fórum Estadual de Mulheres Negras e Cabeça de Negra, do grupo de Mulheres Cabeça de Negra e conselheira CNPIR (Conselho Nacional de Políticas de Igualdade Racial) e do CEDIMRJ (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro).

A Coalizão Negra por Direitos é uma reunião que reúne 150 organizações do movimento negro, para incidência política no congresso nacional e fóruns internacionais, na defesa dos direitos humanos da população negra brasileira.