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Reportagem

Para religiões afro-brasileiras, espiritualidade e preservação andam juntas

No compasso dos pássaros, a floresta em Belém (PA) envolve quem a adentra. Vestindo branco, entoando rezas e pedindo licença à força espiritual que guarda as matas, Mametu Nangetu, fundadora e liderança do terreiro de candomblé Mansu Nangetu, saúda sua ancestralidade para plantar novas mudas e zelar pelo território. A guardiã, quase octogenária, possui vasto conhecimento sobre plantas e ervas medicinais, aprendido com a avó, e sabe o momento certo tanto para os banhos que recarregam as energias quanto para o preparo de chás que auxiliam o bem-estar do corpo físico. Com o pajé Francisco, seu avô, ela aprendeu na infância que, se um galho fosse retirado do solo, teria que ser replantado.

"Ao longo da minha vida, doei diversas mudas de árvores e mantive o hábito de plantar folhas sagradas nos canteiros das ruas de Belém, porque muitas pessoas de axé perderam seus territórios e hoje não podem cultivar suas plantas. O desmatamento na capital, inclusive, só aumentou", avalia a líder religiosa.

Em seus trabalhos espirituais, ela atua como intermediária na comunicação com diferentes entidades, entre elas o Caboclo Rompe-Mato, associada aos povos originários, e defende que honrar as tradições do patrimônio afro-amazônico envolve estender os cuidados à "grande mãe natureza", nas energias da mata, das águas e da lama.

No candomblé, religião de matriz africana nascida da cosmovisão de povos como os Iorubá, os Bantu e os Fon, assim como em outras expressões sincréticas — umbanda, pajelança e jurema, entre outras —, a natureza é território vivo e sagrado, habitado por orixás, inquices, voduns e entidades que guardam e equilibram os elementos essenciais.

Esses vínculos milenares permanecem sustentados por lideranças religiosas e culturais que, muitas vezes sem apoio institucional, preservam o meio ambiente e saberes tradicionais como parte inseparável da vida espiritual. A persistência dessas práticas afro-brasileiras também enfrenta o racismo religioso, herança de um projeto colonial que silenciou a presença negra e indígena — mas que, em nossa época, encontra força na justiça ambiental.Os povos de terreiro levam a sério o ditado: "sem folha, não tem orixá", pois as espécies vegetais — parte do divino — são as principais responsáveis por conduzir o axé, a energia vital que move o universo, nos ritos e cultos.

Belém, escolhida para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP30, em novembro de 2025, tem passado há décadas por drásticas modificações que impactam o dia a dia dos moradores — e das comunidades religiosas de matriz africana. Com o aumento da pavimentação nas áreas urbanas e o crescimento do uso de carros, Mametu Nangetu diz não encontrar com facilidade as folhas sagradas que ajudou a cultivar. Ela também sofre com as altas temperaturas e, apesar de ser vizinha do Bosque Rodrigues Alves, o Jardim Botânico da Amazônia, isso pouco ameniza o calor em sua residência.

Entre suas inquietações em prol da educação ambiental na comunidade, a mãe de santo conta que, certa vez, nas matas, encontrou mais de 50 alguidares [recipientes de barro usados em oferendas] espalhados pelo local. Foi então que ela decidiu produzir e ensinar a confecção de alguidares e outras vasilhas biodegradáveis, feitas com papel e goma de mandioca, reforçando a consciência e o respeito às tradições, além de evitar o uso de materiais que possam gerar poluição ou acumular água, o que favorece a proliferação da dengue, por exemplo.

"Se eu sou filha da Mãe Natureza, como vou sujar as encruzilhadas? Precisamos pensar na educação ambiental, e eu não vejo essa iniciativa entre os mais velhos, mas entre os jovens. Eles precisam compreender a importância de manter limpas as áreas de mata urbana. Não é necessário colocar sabonete nem perfume nas águas. Mesmo um pouquinho de alimento oferecido é absorvido pela natureza, então é melhor doá-lo a quem tem fome", aconselha a líder religiosa.

Mametu Nangetu, do terreiro Mansu Nangetu, confecciona um alguidar sustentável, usado para fazer oferendas aos inquices (divindades semelhantes aos orixás)
Mametu Nangetu, do terreiro Mansu Nangetu, confecciona um alguidar sustentável, usado para fazer oferendas aos inquices (divindades semelhantes aos orixás) Imagem: Lucivaldo Sena
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O sagrado sob ameaça

Com mais de um século de existência, o Ilê Axé Icimimó Aganju Didê, terreiro de candomblé regido por Xangô, orixá da justiça, localizado zona rural de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, travou durante 40 anos um conflito fundiário contra uma fábrica de celulose na região. A escritura, lavrada em 1913, não impediu ameaças por parte de funcionários, desmatamento no território e a destruição de algumas práticas sagradas em seus 22 hectares. O terreiro integra uma importante rede de casas de candomblé no Recôncavo, encarregadas de preservar a memória dos povos que chegaram ao Brasil pela diáspora africana.

O embate terminou somente em 2024, com a intervenção do Ministério Público da Bahia (MPBA) e o tombamento do espaço pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural brasileiro. O reconhecimento assegurou a preservação do terreiro, marcado pelas características do candomblé rural.

"Desde os meus 12 anos, eu ouvia meu pai contar que, nesta roça, Mãe Judith, a fundadora, cultivava plantas e folhas medicinais para curar as pessoas e alimentar a comunidade, doando parte para a vizinhança. Ele me levava ao amanhecer para a mata, orientava a respeito das ervas e o que era preciso fazer antes de coletá-las, para que elas nos dessem o resultado que precisávamos", recorda o babalorixá Pai Duda de Candola, que assumiu a liderança do Icimimó aos 16 anos.

Entre a natureza que se recompõe com o trabalho coletivo, estão assentados os altares de culto aos orixás dessa comunidade ancestral afro-brasileira. Para Pai Duda, preservar o território é também manter viva a conexão com a energia dos antepassados que habitam nascentes e árvores. "Com o reflorestamento e o cuidado ambiental que temos aqui, animais como tatu, jaguatirica e espécies de cobras voltaram a aparecer. Retomei a produção de alimentos, plantando aipim, batata, inhame, cana-de-açúcar, feijão-mangalô, milho, coco, laranja e hortaliças que garantem a alimentação saudável da comunidade. No candomblé, a natureza é matéria-prima", pontua.

Pai Duda de Candola e filhas de santo do Ilê Axé Icimimó Aganjuu Didê nas matas sagradas próximas ao terreiro, em Cachoeira (BA)
Pai Duda de Candola e filhas de santo do Ilê Axé Icimimó Aganjuu Didê nas matas sagradas próximas ao terreiro, em Cachoeira (BA) Imagem: Vinicius Xavier
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Pai Duda lembra que não só o terreiro, mas toda a cidade de Cachoeira — "um pedacinho da África no Brasil", ele diz — é beneficiada pela fertilidade da terra e pela agricultura familiar que abastece a feira livre local.

"Os orixás são elementos da natureza: o ar que respiramos, a água, a terra, o fogo, as matas, tudo é orixá", explica Pai Duda. "A juventude do Icimimó já nasce com essa educação espiritual e ambiental, que, na verdade, é uma só, trazida no ori [cabeça] por Olodumare [Deus]. Todos defendem e preservam o meio ambiente. Reverenciamos e batemos a cabeça na terra para as árvores, e elas nos respondem". Ao ser questionado sobre como ouvir esses sinais, o pai de santo explica que é através do sentir, e não do racional. Ele acrescenta que, ao respeitar a natureza, ela permite o acesso aos seus mistérios, e esse retorno amoroso "nunca abandona os filhos de axé".

O cuidado ambiental das comunidades afrodescendentes foi comprovado por um estudo recente: territórios quilombolas titulados no Brasil e em países vizinhos reduzem o desmatamento em até 55% em relação a áreas semelhantes, embora nem todos esses quilombos estejam vinculados às práticas religiosas do candomblé.

Catástrofe climática

Em maio de 2024, a enchente histórica que atingiu o Rio Grande do Sul invadiu o terreiro Odju-oba Aláfia de Oya, situado no bairro Mathias Velho, em Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre, interrompendo temporariamente suas atividades, agora retomadas.

"Tem mãe de santo que não consegue falar desse evento sem chorar, porque agora cadê o seu legado? Cadê o seu terreiro? Isso é muito sério, envolve vidas, memórias e o sagrado", desabafa a ialorixá (mãe de santo) Gueth de Xangô. Durante o período de recuperação após a catástrofe, a comunidade obteve alguns avanços por meio da mobilização dos moradores, como a remoção de entulhos das casas, restos de móveis e demais materiais, além da ajuda da Rede Afroambiental. Ainda assim, há registros no bairro de residências que conservam marcas visuais da tragédia, que é "entristecedora, não só para quem vê, mas para quem viveu." A mãe de santo reclama da administração do município: "a gente está atirado aos leões, não temos respaldo; o nosso prefeito [Ayrton Souza, do PL] é evangélico e contra o candomblé, então nós não existimos, estamos fora do mapa".

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O trabalho de formiguinha impulsionado por Mãe Gueth no momento é utilizar espaços públicos, como praças e canteiros, para plantar "tudo que a boca pode comer e todas as ervas que podem nos servir" como meio de cura para a alma e o sofrimento geral. Ela relata que a Praia do Paquetá, que no passado abrigava um recanto sagrado aos orixás, foi destruída por vândalos, restando apenas uma imagem que representa Iemanjá.

"Eu acredito que nós, o povo da religião de matriz africana, somos os que mais cuidam e protegem a mãe natureza. Nós sabemos que, se não defendermos as águas, dos rios, riachos, córregos e cachoeiras, não tem orixá."

A liderança do Aláfia de Oya alerta que, diante da ausência de providências por parte do governo e do município, a comunidade entra em pânico a cada forte chuva, marcada pelo trauma da possibilidade de um novo desastre. "As águas, quando encontram caminho, não esquecem mais."

Mãe Gueth de Xangô, líder religiosa do terreiro Odju-oba Aláfia de Oya, em Canoas (RS)
Mãe Gueth de Xangô, líder religiosa do terreiro Odju-oba Aláfia de Oya, em Canoas (RS) Imagem: Arquivo pessoal

E os sacrifícios de animais?

Frequentemente surgem debates públicos e propostas políticas que buscam proibir no país o uso de animais em rituais de religiões de matriz africana. Muitas vezes, essas discussões são atravessadas por preconceitos e desconsideram a diversidade entre tradições, tornando o assunto ainda mais sensível quando se reflete sobre a relação entre religiosidade e meio ambiente.

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Na experiência do babalorixá Aurélio de Odé, autoridade tradicional do Ilê Odé Axé Opô Inle, comunidade localizada no Araponga, no Distrito Federal, que participa de eventos em prol da justiça social e das discussões sobre o tema, há pouco interesse genuíno em ouvir o lado dos terreiros, constantemente hostilizados. "No meu axé, como em muitos, tratamos os animais com respeito e reverência. Eles fazem parte de um ciclo sagrado, tudo é feito com zelo e fundamento. Cuidamos deles e pedimos licença à natureza, bem diferente do que acontece nos abatedouros. Quando o momento chega, nada é descartado; tudo do animal é aproveitado", explica o sacerdote.

Ele compartilha que o couro cobre os atabaques, os tambores sagrados; os ossos são triturados e transformados em pó para a medicina tradicional; as vísceras, por vezes, são enterradas e convertem-se em adubo, ou são oferecidas para alimentar urubus e peixes, integrando o processo de compostagem. O que muitos desconhecem, na visão dele, é que, longe de causar sofrimento, o ritual devolve vida, equilíbrio e dignidade ao animal, à natureza e a quem vive ao redor.

"Quem nos critica não confronta os grandes produtores do setor de abate. É mais fácil tentar destruir e prejudicar determinados grupos sociais, no caso, as comunidades de matriz africana", enfatiza o babalorixá, destacando que o Brasil é um dos maiores exportadores globais de carne bovina e frango, e que muitos dos abatedouros públicos são ambientes insalubres e cruéis. Entretanto, os apontamentos recaem de maneira demasiada sobre a "turma da macumba".

"Narrar fatos isolados sem conhecer o candomblé é perigoso. Nosso fazer é ancestral, ético e cheio de cuidados, e precisa ser respeitado como tal. Discutir justiça ambiental sem nos ouvir é cometer o erro colonial de sempre: tentar instruir cuidado com a natureza para quem sempre zelou por ela", ressalta.

O babalorixá Aurélio de Odé, líder religioso do Ilê Odé Axé Opô Inle, em Arapongas (DF)
O babalorixá Aurélio de Odé, líder religioso do Ilê Odé Axé Opô Inle, em Arapongas (DF) Imagem: Arquivo pessoal

Prêmio Mãe Beata de Iemanjá e Escola Afroclimática

Voltada ao combate do racismo religioso e à proteção dos territórios dos povos de terreiro, a Rede Afroambiental surgiu durante a ECO 92, no Rio de Janeiro. Mãe Beata de Iemanjá, liderança espiritual do Ilê Axé Omiojuaro e aliada na conservação do meio ambiente, junto com o filho Aderbal Ashogun, mestre em cultura tradicional pelo Iphan, conduziu a iniciativa numa perspectiva ancestral que reconhece a Terra como um ser vivo, matriarcal e sagrado, digno de respeito e cuidado.

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A partir dessa concepção, a rede se consolidou como um movimento internacional ativo de comunidades tradicionais que combinam ecologia, cultura e saberes transmitidos por mestres e mestras ao longo do tempo.

Com mais de três décadas de atuação, e após a passagem de Mãe Beata para o plano espiritual em 2017, o legado por ela semeado seguiu através dos seus filhos e filhas. No ano de 2025, foi inaugurada a Escola Afroclimática Mãe Beata de Yemanjá (EAMBY), a primeira instituição de ensino no Brasil a integrar saberes tradicionais afrodescendentes com práticas pedagógicas, sociais e científicas. As formações presenciais, realizadas dentro de terreiros de candomblé, resgatam costumes agrícolas, como a criação de hortas, adaptáveis ao cotidiano das grandes cidades.

"A Escola Afroclimática Mãe Beata de Iemanjá vem resgatar o matriarcado: precisamos cuidar uns dos outros. A educação ambiental é o patinho feio entre as disciplinas, pois propõe formas decoloniais para mudar o Brasil. É imprescindível que todos saibam que, na atual crise climática, estamos sendo massacrados", argumenta mestre Aderbal, coordenador da Rede Afroambiental.

Aula na Escola Afroclimática Mãe Beata de Yemanjá
Aula na Escola Afroclimática Mãe Beata de Yemanjá Imagem: Foto cedida pela Rede Afroambiental

Lysandra Yaluande Egbomi de Osun, jovem mestra da Rede Afroambiental Sudeste, coordena a Cozinha Solidária Adum, na favela do Chapéu Mangueira (RJ). Com fundamento de axé, o espaço promove a segurança alimentar na comunidade e funciona como ponto de resistência, oferecendo às mulheres periféricas — independentemente da religião — noções de educação ambiental. Muitas chegam ao terreiro com pouca consciência sobre sustentabilidade e saem com práticas aplicáveis no dia a dia, como compostagem, aproveitamento integral dos alimentos, coleta de água da chuva e cultivo de ervas medicinais.

"Temos plena noção de que a água é um recurso precioso, e escasso, especialmente nas favelas, onde a distribuição é falha e várias famílias enfrentam racionamento constante. Por isso, buscamos formas de reaproveitar e economizar sempre que possível, apesar dos recursos limitados", observa Yaluande.

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Outra frente lançada este ano pela Rede Afroambiental é o Prêmio Mãe Beata de Iemanjá, iniciativa inédita realizada com o Ministério da Igualdade Racial (MIR), em parceria com universidades públicas, que visa fortalecer as ações ambientais promovidas por povos de terreiro em todo o país. Serão contempladas 54 casas de axé dedicadas à proteção do meio ambiente, à mitigação dos impactos das mudanças climáticas e à valorização dos saberes tradicionais e ancestrais.

Por Júlia Moa

*Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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