Produtores rurais se tornam aliados na conservação de onças no Iguaçu

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"É preciso acolher o medo e transformá-lo em encantamento, através da informação", acredita a bióloga Yara Barros. Logo que assumiu a coordenação do Projeto Onças do Iguaçu, no Paraná, em 2018, ela sabia que, para o programa de conservação da onça-pintada (Panthera onca) ter sucesso, ele dependia de três pilares: pesquisa científica, engajamento e coexistência.
Isso porque a região no entorno do Parque Nacional do Iguaçu, que abriga a única população da espécie que cresce na Mata Atlântica, é repleta de propriedades rurais, locais que, por uma série de fatores, podem atrair esses felinos a predar animais domésticos. E aí, o que acontecia como resposta, com grande frequência no passado, era a caça por retaliação. Uma realidade que Yara estava disposta a mudar.
"O objetivo era ter pessoas, o Parque Nacional do Iguaçu e as onças prosperando juntos", diz ela. "Se dá para salvar felinos em qualquer lugar do mundo, é através da coexistência."
Criado em 1990, com foco principal no monitoramento e proteção da onça-pintada, por quase três décadas o projeto chamou-se Carnívoros do Iguaçu. Mas a equipe chegou à conclusão de que "carnívoros" representava justamente aquilo que dificultava o engajamento dos proprietários à iniciativa. O nome invocava a percepção, mesmo que subliminar, desses animais estarem prontos para caçar, o que disseminava o medo e o temor a eles.
Rebatizado de Onças do Iguaçu, a principal meta era mostrar a fazendeiros e moradores dos dez municípios situados próximos ao parque que a equipe do projeto não se importava apenas em salvar a espécie da extinção, mas em se tornar parceira da comunidade. E era possível mitigar os conflitos, ou seja, reduzir a predação de animais domésticos por meio da implementação de uma série de medidas.

Foi batendo de porta em porta, em mais de 300 visitas por ano e muitos quilômetros rodados, que, nos últimos sete anos, a equipe do projeto ganhou a confiança dessa gente. Entretanto, foi um longo e surpreendente aprendizado. Logo no início, por exemplo, o time percebeu que havia uma forte antipatia e rejeição a órgãos de proteção ambiental.
"O primeiro passo foi nos desvincular totalmente da questão de fiscalização. Nas visitas iniciais, quando usávamos ainda um uniforme verde, ouvimos de moradores que a cor os lembrava fiscalização. Logo mudamos para o azul e já sentimos uma diferença na recepção", conta Aline Kotz, gestora de coexistência do Onças do Iguaçu. "Outra questão era o veículo. A caminhonete do projeto também remetia a órgãos públicos. Começamos a dirigir um Fiat Uno, um carrinho bem simples. Novamente, a estratégia deu certo. Éramos mais bem recebidos."
Aline sempre realiza as visitas em dupla, acompanhada do colega e marido Thiago Reginato, também gestor de coexistência. Juntos, eles descobriram que, no ambiente rural, muitas vezes as mulheres não gostam de ficar sozinhas com um homem desconhecido; e, em alguns casos, os proprietários rurais preferem que a conversa seja com alguém do mesmo sexo.
Os dois evitam usar termos científicos. O vocabulário precisa ser o mais simples e acessível possível. "Falando a linguagem das pessoas e tendo empatia, você vai ganhando a confiança e as portas vão se abrindo", afirma Thiago.

Medidas de bom manejo evitam a predação
Muitas foram as portas abertas nos últimos anos. E a confiança é tanta que os produtores rurais telefonam a qualquer hora do dia, inclusive de madrugada, para avisar da presença de onças na propriedade. "Já recebi telefonema às 2h30 da manhã, com a pergunta: Yara, está ocupada?", relembra a coordenadora do Onças do Iguaçu. Mas os profissionais estão sempre disponíveis para esse atendimento, não importa a distância ou o horário. O mais importante é evitar a predação dos animais domésticos pelas onças e, em última instância, caso ela já tenha ocorrido, a caça à onça como vingança.
Para isso, em cada atendimento, além da conversa, são entregues materiais educativos, com orientações sobre o que fazer em situações de confronto com grandes felinos - na região há também onças-pardas (Puma concolor). Já o Guia de Coexistência elenca dicas e estratégias para evitar o ataque desses animais aos domésticos.
Onças-pintadas são espécies do topo da cadeia alimentar, e conseguem facilmente matar um animal de grande porte, como uma vaca, de 200 ou 300 kg. Contudo, elas são oportunistas e sempre tentarão saciar a fome com presas mais vulneráveis, em geral as mais velhas, mais novas, fracas ou doentes. Quanto mais fácil a predação, mais elas irão economizar energia.

Entre algumas das medidas de manejo essenciais para evitar que onças sejam atraídas para a propriedade, estão a manutenção de uma boa pastagem para o gado, que, estando bem alimentado, não precisa buscar comida na mata; o cercamento de áreas de criação de galinhas, ovelhas e cabras, sobretudo durante a noite; e o não descarte a céu aberto de carcaças ou vísceras de animais (abatidos para consumo doméstico), que devem ser, preferencialmente, enterradas no solo.
Como onças têm medo de sons e luzes, outros artifícios empregados são a soltura de fogos de artifícios e a instalação de luzes foxlight, ativadas automaticamente por movimento. Ao piscar de formas diferentes e em várias cores, elas reproduzem a ação de um ser humano, segurando uma lanterna.
"Com o uso desses mecanismos, a partir do momento que a onça percebe que não conseguirá abater o animal, ela desiste porque sabe que está perdendo tempo", destaca Thiago.

Quando ocorre a predação, tudo muda de figura. A propriedade recebe um acompanhamento especial do Onças do Iguaçu durante o período de um ano. As visitas são mais constantes e é feito um diagnóstico completo do local, no qual se mostra quais são as principais vulnerabilidades e como elas devem ser contornadas. Se a onça voltar à propriedade, a equipe de coexistência do projeto instala armadilhas fotográficas e pode até dormir ali para entender o que realmente está acontecendo.
Em algumas situações, a surpresa se dá quando se descobre que a predação não é de uma onça-pintada - embora a culpa sempre recaia sobre ela. As pardas também atacam e até cães domésticos, famintos, podem matar outras espécies. Aline e o companheiro já têm tanto conhecimento que, só ao olhar a vítima predada, sabem quem é o responsável. Onças têm como principal característica de ataque a mordida no pescoço. Já cachorros estraçalham totalmente a carcaça.

Prêmio e parcerias internacionais
O reconhecimento pelo engajamento dos produtores rurais é muito valorizado pela equipe do Onças do Iguaçu. As propriedades que preenchem uma série de critérios recebem uma placa de "Amigas da Onça".
A experiência desse trabalho bem-sucedido, com foco na coexistência, envolvendo toda a comunidade local, será compartilhada agora com organizações de países vizinhos, como o Paraguai e a Argentina. Dentro do Parque Nacional do Iguaçu, onde fica a sede do projeto, está sendo inaugurado o Centro de Conservação e Coexistência (CCC). Nele serão realizados treinamentos e exibidos, por exemplo, modelos de galinheiros e de apriscos (abrigos para animais), além de outras ferramentas que têm se provado eficazes.
E não são apenas os produtores paranaenses que têm sido reconhecidos pelo seu engajamento na proteção às onças. Em abril, Yara foi uma das seis conservacionistas premiadas com o Whitley Awards 2025, considerado o maior prêmio mundial da área ambiental, concedido anualmente pelo Whitley Fund for Nature (WFN), fundação do Reino Unido que seleciona pesquisadores que se destacaram por seu empenho científico para a conservação da biodiversidade em países do Hemisfério Sul.

Graças ao projeto como um todo, incluindo o pilar da coexistência, a população das onças-pintadas, espécie que quase foi extinta no sul do Brasil no início dos anos 2000, dobrou nos últimos anos na região do Iguaçu.
Dificilmente a predação de animais domésticos deixará de existir. Em 2024, foram 35 registros - 25 por onça-pintada, quatro por onça-parda e seis por outros animais. Mas agora a tolerância e o entendimento da população são maiores. "Houve uma mudança de atitude. Hoje, quando há um avistamento de uma onça ou uma predação, os proprietários nos comunicam, em vez de matar o animal", celebra Yara. E, juntos, eles tentam resolver o problema, ao compreender que - sim, a coexistência entre seres humanos e vida selvagem é possível.
Por Suzana Camargo
*Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.
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