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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O problema nunca é o outro, mesmo quando é

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Imagem: iStock

11/07/2022 06h00

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Quando eu me inseri no mercado de trabalho muitos anos atrás, no meu primeiro emprego, eu vacilei. Quando cheguei para trabalhar no dia seguinte, me deparei com um post-it que dizia: "você prometeu ligar para o Gustavo e foi embora sem dar retorno".

O Gustavo era um cara curioso, no mínimo. Ele era exigente, perfeccionista, preciosista e até "maniático", haja vista que ele tinha esses rituais muito pragmáticos de como, quando e com quem queria falar. E naquelas últimas semanas, era sempre comigo.

Vou confessar que, aos meus poucos anos de idade, e poucos anos de experiência no mercado, eu achava o Gustavo "um saco". Eu ficava torcendo para que a roda da sorte girasse, e pelas próximas semanas, o escolhido não fosse eu.

Mas aquele post-it me mostrou muita coisa sobre empatia, paciência e a tal da inteligência emocional. Quando eu li aquele post-it, percebi que, dentre todos os "pronomes relativos" que faziam parte da forma de agir do Gustavo, fossem os "variáveis" ou os "invariáveis", a relação que de fato existia para ele, tinha a ver com um mundo de acolhimento.

E ali eu percebi que não era sobre "manias", mesmo que fosse, que não era sobre "dar azar de ser o escolhido da semana", mesmo que fosse, que os pronomes relativos eram "tão importantes" para o Gustavo, mesmo que não fossem. O fato é que o problema não era "o Gustavo", mesmo que fosse.

Porque eu podia escolher bufar quando era a voz dele do outro lado da linha antes de deixá-lo perceber minha insatisfação, assim como eu podia escolher atender animado, com um "bom dia" digno de um melhor amigo. A questão é que eu tinha uma escolha, mesmo que a minha falta de maturidade emocional normalmente me fizesse colocar no "mute" para dar um murro na mesa. Só que sabe o mais triste nisso? O Gustavo continuava na linha, e eu passava o restante do dia com dor na mão.

Sabe o que também foi "um saco"? O que eu senti quando li aquele post-it na minha mesa naquela manhã. Eu lembro do misto de um gosto amargo na boca, com vergonha de mim, no sentir de esquentar o rosto. Me culpei. Afinal, ali eu entendi que o que norteava o mundo do Gustavo eram os "pronomes relativos", e o meu papel era escolher não esmurrar a mesa, e responder os "que", "quem", "quantos", "onde", repetidas vezes, quantas fossem necessárias.

Vê? Que o problema nunca é o outro, mesmo quando é. E eu podia escolher não passar o dia com a mão doendo.

E eu quis te contar do Gustavo porque um vacilo pode mudar completamente a ótica que a gente vê o mundo. Foi nesse momento que o "meu eu profissional" tomou conta, e eu transformei a culpa que senti em responsabilidade. E quando a gente se responsabiliza por algo, esse algo se torna inegociável. E eu não negociei comigo a pessoa que eu queria ser, independente de como fosse o outro. O problema é que a gente muitas vezes não sabe como fazer isso. Mas calma que eu vou te contar a maneira que descobri.

O que sabia até então era que eu não seria um líder assim, não importava quantas horas eu precisasse dedicar para melhorar minhas habilidades, eu não seria um profissional técnico assim, não importava quantos estudos e certificações eu precisasse tirar, e eu não colocaria meu punho pra jogo, não importava quantas técnicas diferentes eu precisasse aprender para desenvolver maturidade e inteligência emocional.

E o interessante nisso foi que percebi que a gente não separa o "eu pessoal" do "eu profissional", nem vice-versa. Então, todas aquelas competências positivas, eu acabaria carregando comigo na vida. Isso também significava que o meu "agir com violência" não tinha um fim com a batida do ponto. Seria algo que eu carregaria comigo também, se fosse esse o caminho que eu escolhesse.

Não é um processo fácil, afinal, ninguém é perfeito. Mas a gente precisa parar de se comparar com os outros, tanto para justificar que "não somos tão ruins assim", quanto para justificar que "nunca seremos tão bons assim". Se for para se comparar, que a gente se compare com a gente mesmo, e que isso seja suficiente para entendermos quem fomos, quem somos, e quem queremos ser.

É óbvio que sem essas percepções nós acabamos achando que lidar com o Gustavo é a pior coisa da vida. O ser humano tem essa tendência né, de achar que aquela situação é "a pior coisa do mundo". Mas gente, o mundo é tão maior que nós.

E é sobre esse mundo que eu queria te falar. O jeito que descobri de como ser alguém de quem eu mesmo poderia me orgulhar. Um mundo onde a gente consegue colocar as coisas em perspectiva, pois precisamos entender, enquanto sociedade, qual é o nosso papel individual para um mundo melhor.

Eu tive a oportunidade de conhecer a grandeza do mundo por essa perspectiva. Esse entendimento que fez o Gustavo e todos os seus "pronomes relativos" parecerem grãozinhos de areia. E não que eu tivesse, a partir dessa realização, deixado de lado todo o meu profissionalismo. Foi muito mais que isso. Foi entender que aqueles grãozinhos de areia podem ser realmente pequenos em comparação ao universo que conheci, mas que justamente por isso eles são tão mais facilmente maleáveis e cheios de possibilidades. Castelos de areia, buracos para enterrar os pés, ou desfechos para serem levados pelas ondas. Simples assim. Como escolher não esmurrar a mesa, escolher fazer dos grãozinhos de areia o que eles quisessem ser.

O irônico é que o meu parâmetro de grandeza do mundo é justamente um grãozinho de areia. Um grãozinho que há 9 anos nasceu e escolheu fazer de mim uma tentativa incansável de ser uma pessoa melhor. E não existem metáforas, poemas, letras de músicas, nem unidas ou misturadas, capazes de representar o sentimento que é poder segurar o universo nas próprias mãos, como eu fiz, 9 anos atrás. Mesmo que eu fosse fluente nos mais de 7 mil idiomas existentes neste planeta, eu não conseguiria te explicar o que senti.

Mas consigo te dizer que esse é um sentimento que eu queria poder te emprestar. A oportunidade de vida que eu gostaria que você tivesse. Que todas as pessoas do mundo tivessem. Independentemente de como é a forma ou a concretização desse universo para você, eu gostaria que você tivesse a oportunidade de tê-lo em suas mãos, com a mesma facilidade que temos de agarrar grãos de areia.

Eu tenho absoluta certeza que se todas as pessoas do mundo pudessem sentir, mesmo que uma única vez, o que sentimos ao segurar o universo inteiro, nenhuma forma de preconceito, violência, ego ou guerra, existiria mais, porque o universo de cada um de nós é transformado através deste sentir.

A gente percebe que o mundo vai continuar girando mesmo que a gente esteja parado. Percebe que o dia adentra a noite, e o tempo se torna tão notável quanto o ar, se eu te perguntar se você percebia que estava respirando neste momento. A lógica do que é de fato importante muda, e ressignifica os "fins de mundo" que a gente consegue resolver abrindo a boca e dizendo o que sente, com cuidado, para não atravessar ou machucar ninguém. A gente percebe os outros, e percebe que existe responsabilidade nossa em agir ou não, nos deixar atingir ou não, ser agente positivo ou não. Pois nunca é sobre o outro, quando o nosso universo é próprio de cada um de nós.

Faz 9 anos que eu escolho, todos os dias, continuar girando com o mundo. Porque parado eu não vou conseguir construir um mundo que seja digno de comportar o que eu senti, 9 anos atrás, quando esse universo inteiro e completo, em forma de olhar, se misturou com o meu, e me mostrou tudo que eu poderia ser.

Para mim, nada é maior do que o universo que minha filha carrega no olhar. O Gustavo, anos atrás, tentou me mostrar o universo dele, mas eu era egoísta demais para entender. O egoísmo percorre uma linha muito próxima da violência, e me arrisco a dizer que o nosso conformismo e a nossa automática reprodução dessas violências, sejam os maiores problemas do mundo.

Por fim, hoje, meu maior desejo de aniversário, em que também nasceu outra versão de mim, é que todas as pessoas que ainda estão esmurrando a mesa, encontrem o seu universo, para que juntos, unindo os nossos grãozinhos de areia, possamos construir um novo universo, baseado em diálogo e respeito, digno de se viver. A escolha é nossa, mesmo quando parece não ser.