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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Você está aprendendo às custas de quem?

"Imagine que você quer aprender a dirigir. Você não pega um carro qualquer e sai dirigindo fora de um espaço seguro." - iStock
"Imagine que você quer aprender a dirigir. Você não pega um carro qualquer e sai dirigindo fora de um espaço seguro." Imagem: iStock

15/11/2021 06h00

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Quanto mais eu trabalho com inclusão de recortes minorizados, mais eu escuto a seguinte frase: "uma coisa é a gente ser preconceituoso de propósito, outra é não ter a intenção, afinal, a gente está aprendendo". Essa frase tem ecoado em diferentes espaços que tenho ocupado. Espaços sociais, organizacionais, e o que mais me assusta, espaços ocupados por pessoas responsáveis por diversidade, equidade e inclusão nos seus postos de trabalho.

Sendo a nossa sociedade tão plural, tão pautada em sistemas de exclusão, com tantas barreiras diferentes para cada recorte social, e com agravantes de interseccionalidade enquanto fator de distanciamento de equidade, faz sentido que o conhecimento destas pautas seja algo atingido apenas com muito estudo, dedicação, vivência, convivência e ações. Mas tem me preocupado muito este discurso, principalmente nestes locais e por estas pessoas que se colocam como responsáveis por virar o jogo da desigualdade. Se são estas pessoas que estão ainda aprendendo, estes os lugares que ainda "não estão completamente preparados", elas estão aprendendo errando com quem?

Veja, muito deste discurso vem acompanhado de situações como "foi bom que esta pessoa entrou na empresa, pois aprendemos muito sobre as coisas que estávamos fazendo de errado". Aqui, olhando para o espaço que se modificou e se adequou, o que sinto é alívio, mas ao mesmo tempo eu fico me questionando como está a pessoa que foi usada para o aprendizado alheio, e como ela sobreviveu a esta situação (se sobreviveu).

E é por isso que eu gostaria de falar com vocês sobre essa síndrome do "eterno aprendiz". É diferente de um aprendizado contínuo, onde os conhecimentos se expandem. Estou falando das pessoas e empresas que machucam existências em prol de uma suposta aprendizagem, mas que continuam não sendo protagonistas de seus próprios aprendizados, e em todas as situações de preconceito, racismo, lgbtfobia ou capacitismo, jogam o bote salva-vidas: "não foi de propósito, eu estou aprendendo."

Nos ambientes organizacionais, esse bote salva-vidas ainda vem reforçado, infelizmente, pelas pessoas que deveriam problematizá-lo, pois são as mesmas pessoas que estão responsáveis pela inclusão, mas que vêm com discursos de que está tudo bem errar, e que isso faz parte.

Só que se você for olhar pela ótica de quem sofreu o crime de racismo, de lgbtfobia, ou qualquer outro preconceito, tanto faz se você teve ou não a intenção de cometer tal ato, pois as cicatrizes que ficam em quem foi atingido são as mesmas, tenha sido com intenção ou não. E independentemente da intenção, foi crime.

Existem diversos locais seguros, como cursos, capacitações, formações, sites, newsletters, livros, podcasts, canais em redes sociais, enfim! Uma infinidade de espaços seguros para que você aprenda sobre recortes minorizados e suas barreiras, sem precisar que a sua aprendizagem se baseie no "é preciso errar para aprender". Pois quando você erra em um ambiente não-seguro, não voltado especificamente para que você aprenda sobre tais assuntos, você está machucando pessoas ao seu redor, e relativizando a dor delas, para que você possa aprender sobre um assunto que com certeza já a machucou inúmeras vezes. Você está abrindo uma mesma ferida, com essa percepção egoísta de que vale a pena, visto que você está aprendendo sobre o assunto.

Mas eu volto à problemática de você não ter a intenção, e trago um paralelo para mostrar a gravidade da situação. Imagine que você quer aprender a dirigir. Você não pega um carro qualquer e sai dirigindo fora de um espaço seguro. Você busca por uma escola especializada em te ensinar a dirigir, e o espaço seguro para que aprenda se dá através das aulas teóricas e práticas, sempre com a presença de um especialista, que a qualquer sinal de que você possa vir a machucar alguém, assume o controle.

Porém, imagine se você não busca por este espaço seguro para aprender a dirigir, e resolve pegar o carro de um amigo, e dirigir fora destes locais dedicados para seu aprendizado. Aqui, nesse seu processo de ir "aprendendo com os erros", em um determinado cruzamento, você fica na dúvida de quem é a preferencial, hesita, não dá a seta, e faz uma conversão proibida. Faz uma conversão proibida em uma faixa de pedestres, onde havia uma pessoa atravessando, e como você não tinha aprendido sobre "ponto cego" no espaço seguro, você não viu, e a atropelou.

Não importa quantas vezes você diga que não teve a intenção de machucar e tirar a vida daquela pessoa. Não importa quantas vezes você diga que estava aprendendo. Essa pessoa perdeu a vida por sua causa, com a sua intenção ou sem ela. E se a gente for levar a metáfora ao pé da letra, existem crimes dolosos, onde há a intenção, e crimes culposos, onde não há a intenção. Aos olhos da lei, ambos são crimes, e quem os cometeu deve pagar por eles. Mesmo que você não tenha tido a intenção, você cometeu um homicídio culposo.

Então, não! Não está tudo bem continuarmos dizendo que estamos errando porque estamos aprendendo. Errar, quando estamos falando de pessoas de grupos minorizados, é ir tirando, a cada erro, um pouco das suas vidas. E neste cenário, mesmo que você não tenha a intenção, é sua a culpa deste crime.

Pare de aprender às custas das vidas das quais você diz ser aliado, e que não tem a intenção de machucar. Procure um ambiente seguro para protagonizar seu aprendizado. Até porque, de boas intenções, o inferno está cheio.