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M.M. Izidoro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Jô Soares, nosso grande Bobo da Corte

Jô Soares faleceu na última sexta-feira (5). - Bruno Santos/ Folhapress
Jô Soares faleceu na última sexta-feira (5). Imagem: Bruno Santos/ Folhapress

M.M. Izidoro

Colunista do UOL

06/08/2022 06h00

A morte do multiartista Jô Soares veio em uma semana em que estou pensando muito no papel da cultura e das artes nesse momento de transição que estamos vivendo.
Vendo os vídeos do Jô, de suas entrevistas mais memoráveis, dá para ver que ele tinha o papel que eu acho o mais difícil e mais importante de ter em uma sociedade: o de "Bobo da Corte".

Quase sempre vemos o "Bobo da Corte" como aquele personagem tolo que usa roupas grandes, maquiagem pesada e faz tudo por uma gracinha. Mas eu gosto de pensar que o papel dele é, na verdade, muito maior. O papel de um "Bobo da Corte" é de ser a única pessoa que consegue falar a verdade para um rei ou rainha, sem ser morto por isso.

Ao falar fazendo rir, ele externaliza os sentimentos de todo um reino, muitas vezes sem que a pessoa que esteja sendo criticada perceba isso. E ainda mais, ela ri da própria desgraça.

Jô tinha esse gingado de fazer o Brasil rir dá suas maiores mazelas. Isso com suas entrevistas com famosos, políticos e anônimos, com suas peças e livros e muitas vezes sem fazer a gente perceber que estávamos rindo de algo muito trágico, como quando ele fazia seus programas comédia e já colocava no horário nobre personagens que escancararam um lado nefasto da nossa sociedade como a homofobia, machismo e gordofobia.

E ao fazer isso, a gente ria com ele da gente mesmo.

Hoje com o fim do mundo batendo à nossa porta, estamos em uma época que parece que não existe mais lugar e clima para darmos essas gargalhadas. O mundo ficou sério e sombrio. Justo quando a gente precisava de alguém para acender uma luzinha qualquer para mostrar que existem caminhos diferentes que podemos seguir. E que podemos seguir sorrindo neles.

Por isso que a cultura é algo tão subversivo. Que ela gera uma identificação de nós com o nosso entorno e faz a gente viver e pensar coisas que talvez nunca faríamos em nossa vida cotidiana.

Um grande exemplo disso, é que no país que mais mata a comunidade LGBTQIA + no mundo, a gente tenha como campeão de bilheteria da história, os filmes da franquia "Minha Mãe é uma Peça". Principalmente o terceiro e último filme da franquia, em que a personagem da Dona Hermínia, feito pelo saudoso Paulo Gustavo, tem de lidar com a gravidez da filha e o casamento do filho gay.

Mais de 9 milhões de pessoas foram ao cinema, num país que historicamente odeia gays, para rir e se emocionar com um ator gay vestido de drag casando o filho gay com outro homem. Assim, quantas famílias que nunca tiveram essa conversa com seus filhos puderam repensar suas posições ao saírem da sala de cinema e ver que tudo bem ter filhos gays e até filhas grávidas fora de um casamento tradicional.

É por causa disso tudo que a cultura é quase sempre uma das primeiras baixas sociais de governos que flertam com o autoritarismo. Pois ela te faz sentir, pensar e viver coisas diferentes. E se tem uma coisa que um ditador - ou presidente da república que pensa que pode virar um - odeia, é que alguém possa pensar diferente que ele.

Por isso que o Jô era importante. O Paulo Gustavo foi importante. Que pessoas como o Paulo Vieira, Fábio Porchat, Lázaro Ramos, Ícaro Silva, Tata Werneck, Ingrid Guimarães e diversas outras pessoas que estão fazendo a gente ver um Brasil diferente, são importantes.

E por isso, que aconteça o que acontecer em Outubro, a gente tem de brigar por uma cultura brasileira forte, pois só assim a gente pode voltar a sorrir e curtir a grande ideia que é ser brasileiro.

E fecho essa coluna com um agradecimento público ao Jô Soares. Quando eu tinha 18 anos, eu achava que já era um cineasta e resolvi fazer meu primeiro longa metragem com amigos da faculdade de cinema da FAAP, em São Paulo. No filme, tinha uma hora que o personagem principal - feito com maestria pelo também saudoso, Olair Coan - vai ao teatro. Eu queria filmar uma peça para colocar no filme e não tínhamos recursos para montar uma nossa.

Foi aÍ que o Jô dirigiu uma montagem de Ricardo III, do Shakespeare, no teatro da minha faculdade com um elenco global que tinha o Marco Ricca e a Glória Menezes, e fomos lá com toda a cara de pau pedir permissão para gravar a peça para colocar no nosso filme.

O Jô não só liberou, como bateu um grande papo comigo e me deu aquele empurrãozinho que eu precisava. E talvez uma das razões que eu esteja contando histórias aqui hoje tenha sido que uma das minhas referências artísticas foi bom comigo e falou a coisa certa na hora que eu mais precisava. Eu acabei o filme e hoje ao saber da morte dele vi as cenas da peça e de longe é a melhor coisa que eu já filmei. Mas porque quem fez foi o Jô.

Obrigado por tudo, Jô. A gente já se encontra.
Até lá, vamos continuar aqui fazendo o que você sempre fez, mostrar pro Brasil que dá para sorrir.
Beijo do Gordo.