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M.M. Izidoro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Você tem de continuar vivo para achar que eu estou errado

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Imagem: Getty Images

M.M. Izidoro

27/03/2021 06h00

Tem um meme que está rondando a internet nesta semana pré Páscoa que diz, "Nessa Páscoa, se você não sabe ressuscitar, fica em casa".

Sim, eu sei que já faz mais de um ano que estamos no meio da pandemia. Queremos trabalhar, ir a restaurantes, sair com nossos amigos, beijar a boca de estranhos ouvindo música alta e tudo aquilo que fazíamos antes do coronavírus tomar conta de tudo.

A coisa é que para você discordar desse meme e do que vou falar aqui para frente, só existe um jeito: você tem de estar vivo.

Se você for dar uma escapadinha no mega feriadão que algumas cidades criaram, se você for ver seus amigos ou família no almoço de Páscoa, ou até se você tá pouco se lixando e tá indo para baladas clandestinas, e você se contaminar com o vírus e não conseguir um leito no hospital ou oxigênio, você não vai ter como vir aqui me xingar depois e falar que eu estava errado. Você não vai poder fazer mais nada. Você tem de continuar vivo e respirando pra me xingar nos comentários.

Gente muito mais inteligente do que eu, diz que tem três grandes forças - ou pulsões, se formos usar um termo bonito - que movem o mundo. Essas forças são o sexo, o dinheiro (ou o poder) e a morte. Essas três coisas estão basicamente por trás de todas as decisões que a gente toma na sociedade moderna, mas ao mesmo tempo quase não conseguimos falar direito e direto sobre elas.

A gente faz escolhas pensando em conquistar parceiros sexuais para procriar ou ter prazer, em ficar mais rico para prover para nós e quem a gente ama - e facilitar a conquista sexual - e tentar adiar a morte pelo máximo de tempo que a gente conseguir.

Mas a gente fala disso nas entrelinhas. A gente fala disso atravessado. É muito difícil a gente ter um papo reto no nosso trabalho sobre quanto é o salário de cada um para ver se estamos recebendo algo justo. Se você estiver devendo, então, esquece de pedir ajuda e abrir o jogo para alguém. Se a gente for falar de sexo, é quase sempre na malicia e na sacanagem e não para educar sobre os perigos e até como ter mais prazer. A morte, então, você começa a falar e o povo já faz o sinal da cruz do seu lado e muda de assunto rapidinho.

Tudo isso acaba fazendo com que esses assuntos virem tabu, apesar deles fazerem parte da nossa vida o tempo todo.

Falar como foi sua transa com o crush de forma jocosa não é falar de sexo.

Falar que ganhou um cartão de crédito de uma fintech não é falar de dinheiro.

Falar que sua avó morreu e que deus a tenha não é falar de morte.

São assuntos difíceis. São assuntos desconfortáveis. Mas são coisas que a gente tem de falar.

No momento que oficialmente temos mais de trezentas mil pessoas mortas na pandemia, estamos falando de milhões de pessoas impactadas diretamente por perdas de pessoas queridas. Algumas famílias morrendo todos de uma vez só. Histórias inteiras sendo interrompidas, por que a gente não se sente confortável em falar de algo que é natural e que vai acontecer com todos nós.

Todos nós vamos morrer, sim. Mas não precisa ser agora.

Eu já quase morri algumas vezes. Sim, vi a luz mais de uma vez.

A mais intensa foi um acidente de carro quando eu tinha seis anos de idade. Eu praticamente tive de reconstruir o lado direito do meu rosto. Tomei mais de 1.200 pontos. Fiquei semanas em uma cama de hospital. Minha mãe e minha irmã que estavam comigo, ficaram meses. E ali, bem novinho, eu entendi que tudo acaba. Eu entendi que a vida tem um fim. Que o "felizes para sempre" das histórias que eu gostava, não era tão para sempre assim.

Olhando para trás, eu vejo que esse fato foi um dos maiores professores da minha vida inteira. Pois ao ver a morte de perto, eu entendi que não preciso ter medo do que todo mundo tem, mas também entendi que eu tinha um número finito de decisões para tomar e que eu tinha de fazer as que me fizessem ser feliz do que jeito que fosse, pois o maior problema que eu poderia ter - que seria morrer - não era um problema tão grande assim.

Mas eu também vi o que acontece com quem fica para trás em uma situação dessa. Eu vi como meu pai ficou. Como nossos amigos próximos e nossas famílias ficaram. Eles não tiveram a iluminação que eu tive, eles só ficaram com o trauma. Alguns até hoje. Às vezes eu tento bater esse papo que estou batendo aqui com você aí do outro lado da tela com eles, e vários ainda não conseguem. Mesmo quase 30 anos depois.

A gente nunca acha que pode acontecer com a gente. Ainda mais quando a gente é jovem. Quando a gente tem poder aquisitivo e plano de saúde. Mas aconteceu comigo e nesse último ano aconteceu com mais de trezentas mil pessoas. Só nessas últimas semanas, aconteceu com meus amigos Edson e Leo e mais uns cinco conhecidos. Mesmo eu aceitando que a morte acontece, fiquei bem mal nesses últimos dias porque não tenho como abraçar os outros amigos que amavam o Edson e o Leo como eu amava. Achei que ia ter outro ataque de pânico, que não ia dar conta. Mais do que o vírus me pegar, eu fui acometido pelo poder de destruição gigante que algo tão pequeno consegue causar.

Mas eu senti isso, porque eu estou respeitando a quarentena e, por enquanto, ainda estou vivo.

Eu tô falando só de morte, mas tudo isso está impactando nosso sistema financeiro e nossas relações íntimas de uma maneira que nunca vimos antes e ainda vamos viver isso um bom tempo depois que o último humano for vacinado (ou a gente largar a mão de vez e o vírus mutar de um jeito que não vai dar pra gente vacinar todo mundo a tempo. De qualquer jeito. O problema vai ser resolvido.)

Hoje a narrativa é de separação. Se você apoia um time de futebol, um partido político, uma religião ou um presidente, você automaticamente é amado por uns e odiado por outros. Parece não ter meio-termo, nem tentativa de diálogo. Tem gente se xingando por causa de vacinas que curam e outras não acreditando que tem remédio que comprovadamente não cura.

E a cada dia que a gente perde tendo essas discussões, é um ataque de 11 de setembro que acontece no país.

Todo dia.

Você pode achar que eu estou errado. Você pode ter apertado o número que você quis na urna eletrônica. Você pode louvar o deus que você quiser. Mas você só fez isso, porque você estava vivo. Assim como você está vivo agora para ler esse texto, para amar as pessoas que você ama, para trabalhar para acumular o dinheiro que você quiser, para continuar deixando a morte um assunto tabu ou não. Tem líder religioso que falou um monte da pandemia e de maneiras não comprovadas de cura e no fim tomou vacina em outro país. Tem político, artista e esportista que fizeram o mesmo. Se está certo ou errado, não estamos aqui para falar.

Mas, se eles fizeram isso, é porque eles estão vivos. Assim como você também está e tem de continuar para continuar apoiando quem quiser ou rever suas posições. Dentro de um caixão fica meio difícil.

Talvez a única maneira que todos nós vamos continuar assim é se a gente trabalhar junto. O vírus pode mutar. A economia, quebrar. Pode chegar a fome, o desamparo e outras doenças. Mais do que morrer, a gente pode sofrer muito. Cada dia essa realidade está mais próxima. Seja por políticas governamentais genocidas, seja porque nossos chefes não deixaram a gente trabalhar de home office em nome da produtividade e do bônus no fim do ano, seja porque não dá para trabalhar de home office no emprego que você tem ou seja porque a gente escolheu fazer um churrasquinho só com aqueles quinze amigos mais próximos.

Não é só o governo que vai tirar a gente dessa. É o mercado, são as empresas, é você e sou eu. É coisa pequena como ficar em casa quando pode. Usar máscara. Não se matar usando remédio errado enquanto a gente espera as coisas grandes como vacinação em massa, um lockdown emergencial e apoio econômico para as milhões de pessoas que precisam.

Você pode não concordar comigo, mas você tem de continuar vivo para continuar achando que eu estou errado.