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M.M. Izidoro

Os vazios que encontraremos

Essa última semana voltei a trabalhar presencialmente. Ainda em horário reduzido. Cheio de protocolos, máscaras e álcool em gel. Eu e minha família somos muito grupo de risco e se eu não tomar esse cuidado por mim, tenho de tomar por eles.

O escritório que estou trabalhando fica em uma região de São Paulo que eu frequentava muito antes da pandemia. Passei muitos dias e noites naquelas ruas com amigos e amores. Comia nos restaurantes, bebia nos bares, trabalhava nos escritórios e cafés.

Ao voltar para lá meses depois do começo da quarentena, eu tomei um choque.

Memória é uma coisa engraçada, pois ela é uma edição dos melhores e piores momentos da sua vida que você quase não tem controle. No primeiro dia que eu saí de casa, rumo ao escritório, a minha memória era pura afetividade.

"Nossa, será que aquele restaurante que eu amo faz delivery?"

"Será que consigo tomar um café de longe com aquele meu amigo?"

Mas ao passar na frente do restaurante que eu amo, descobri que ele não fazia mais delivery por que ele não estava mais lá. Assim como meu amigo, que tinha mudado para a casa da família no interior depois que perdeu o emprego.

Muita coisa que eu lembrava não estava mais lá. Onde havia memória, agora há vazio.

Na série The Leftovers, Damon Lindelof - que depois viria criar Watchmen, outra série bem presciente - e Tom Perrotta - o autor do livro em que a série foi baseada - contam a história do que aconteceria com o mundo se um dia 2% da população mundial desaparecesse do nada.

O que aconteceria com as pessoas que perderam a família toda? E o que aconteceria com aqueles que não perderam ninguém?

2% pode parecer um número pequeno, mas 2% de 7 bilhões é muita gente.

Esses 2% viram rapidamente 10%, se contarmos todos os afetados diretamente quando a gente pensa nas famílias que perderam alguém. E essa porcentagem aumenta exponencialmente quando a gente começa a levar em consideração as comunidades todas como escolas, empresas, bairros, tribos e por ai vai. E assim é impossível fugir das consequências de apenas 2% das pessoas desaparecem de uma hora para outra.

Nessa semana que passamos do um milhão de mortes oficiais por COVID-19 no mundo, essa série não me saiu da cabeça. Já estamos em 0,014% de desaparecidos pela doença e muito provavelmente esse número é bem maior e já estamos vivendo em uma versão do mundo criado por Lindelof e Perrotta.

O caos sanitário que o COVID-19 está trazendo me preocupa muito, mas os problemas de saúde mental que vão acontecer por causa dele me preocupa ainda mais.

O que vai acontecer quando todo mundo tomar a vacina e tentar voltar ao normal e o normal não estiver lá?

Quando a gente começar a sentir o luto de todos que morreram, de todas as famílias que acabaram, das pessoas que mudaram, dos empregos que não vão voltar, dos nossos lugares favoritos que fecharam. Tudo isso sem a gente poder dizer adeus, sem a gente poder se despedir, sem até aceitar que tudo mudou e não vai ser mais o que era antes.

Essa "segunda onda" de saúde mental pode ser mais violenta que a primeira onda de saúde física, pois contra o vírus a gente deve vai criar uma vacina ou alguma imunidade, mas contra um sentimento a gente não tem o que fazer a não ser aceita-lo e isso é difícil demais.

Mas temos como nos preparar.

Para isso, é preciso começarmos a cuidar de nós mesmos e ficarmos fortes e saudáveis para quando a "bad" bater a gente não deixar ela tomar conta de nós por muito tempo. Por que ela vai bater. E tudo bem a gente ficar triste por um tempo, mas por muito, já não é tão legal.

Ao cuidar da gente, a gente cuida do outro. Pois, acabamos ficando fortes para dar um amparo e ombro para quem precisa. E muita gente vai precisar.

Então, se você assim como eu é fã do The Leftovers, você já sabe que pode ter um outro lado melhor para tudo isso. Mas antes disso, vamos ter de enfrentar dois dos piores sentimentos humanos que é a incerteza e a dor.

No livro do "The Leftovers", Tom Perrotta escreve o seguinte:

"Naquela época, quando todos pensavam que o mundo duraria para sempre, ninguém tinha tempo para nada."

Agora que a gente sabe que o mundo pode parar a qualquer momento, que tenhamos tempo pelo menos para ser gentis com a gente, com o próximo e com o mundo como um todo.

Vamos ter de reconstruir muita coisa. Vai ser como replantar uma floresta inteira que foi queimada, mas que vai voltar a florescer. Mas que antes temos de apagar o fogo, engolir fuligem, cuidar dos seres queimados, aguentar as mudanças climáticas que vem com isso para depois aproveitarmos o que a floresta nós dará em troca.

Vamos passar por esse luto coletivo juntos e isso é o que importa.

Não vai ser fácil.

Vai doer.

Vai demorar.

Como diz um dos meus mestres de meditação:

"Tempo, processo e erros estúpidos. Só assim para evoluir."

E é assim, que vamos conseguir preencher esses vazios todos dentro e fora da gente, com novas memórias e afetos.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A porcentagem de "desaparecidos" é de 0,014%, não 0,7%. A informação foi corrigida.