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M.M. Izidoro

Sobre desistir

18/04/2020 04h00

Eu já falei um pouco sobre isso aqui na coluna um tempo atrás. Falei sobre quem não desistiu. Sobre quem fez feitos gigantes e memoráveis. Mas nesse momento que a gente está, eu queria falar dos caminhos que não foram tomados.

Hoje em dia, o ato de desistir é visto não só como uma derrota, mas quase como a abdicação da vitória. Temos de ser vencedores. Temos de ser os melhores. Nunca desista do carro do ano. Nunca desista da promoção na empresa. Nunca desista de um relacionamento que não faz mais sentido. Nunca desista dos seus sonhos.

O problema é que as coisas mudam e ajustar nossos sonhos para as novas realidades é uma ideia de fracasso. Você deu tudo de si. Você não mediu esforços. O sonho era seu. Mas só aquela primeira versão do sonho. Não a versão que está na sua frente nesse momento.

A pandemia trouxe esse choque para todos nós. Era depois do carnaval - pelo clichê, o ano no Brasil tinha acabado de começar - quando tudo parou. Todos aqueles planos, sonhos e desejos materiais e físicos tiveram que frear bruscamente. Daquela paquera com o match no aplicativo, passando pela viagem com os amigos no feriado ou atingir as metas que a matriz internacional da empresa colocou para o seu departamento. Nada mais podia ser feito.

Isso está gerando um trauma de escala global, talvez nunca visto antes.

No geral, humanos são muito ruins com mudanças. Sejam de casa, sejam de apartamento, sejam de expectativas. Nós demoramos muito para aceitar o que está logo ali na nossa frente. Quanto mais velho a gente fica, mais essa vontade de não mudança fica latente. Talvez por isso que governos de vários países liderados por homens mais velhos, tenham demorado tanto para assumir a realidade da pandemia, quanto governos liderados por mulheres jovens agiram e mudaram mais rápido. A naturalidade da inconstância é uma coisa da energia de revolução da juventude. E é exatamente nessa energia que a gente está preso agora.

Nada do que era, vai continuar sendo. Durante semanas, meses e até anos, não vamos conseguir nos encontrar com nossos amigos e famílias em lugares públicos. O medo do toque de estranhos e conhecidos vai ser algo real. Estruturas econômicas, sociais e políticas vão implodir. Vamos ter de desistir de muita coisa que fazia parte da nossa vida normal, só por que essa coisas não vão estar lá ou se ela estiver, podemos nos infectar, e infectar nossas famílias, com um vírus sem cura.

Pode parecer assustador o que eu estou escrevendo, mas eu só estou aqui hoje escrevendo essas palavras para vocês em um dos maiores portais de comunicação do mundo, por que eu desisti de muita coisa. Eu desisti de uma carreira renomada no cinema. Desisti de destruir minha saúde física e mental por troca de grandes cachês no mundo da publicidade. Desisti de amores. Desisti de amizades tóxicas. Desisti de seguir sonhos antigos que, vendo agora na distância e calma que só o tempo trás, nem eram meus sonhos de verdade. Eram os sonhos que pessoas antes de mim sonharam e eu fui bobo de acreditar que seria o meu sonho também.

O medo do incerto é real. É algo primal. Vem dos tempos que a gente estava na caverna e o barulho do lado de fora podia ser só o vento ou um animal querendo comer a sua tribo. Por causa disso, algumas tribos ficaram nas suas cavernas por séculos e até milenia. Temos registros de tribos na França que moraram no mesmo lugar por mais de cinco mil anos, ou seja, uma vez e meia o tempo desde que Jesus nasceu lá na manjedoura. Isso é muito tempo reproduzindo as mesmas coisas, no mesmo lugar, com as mesmas pessoas.

Hoje o tempo está mais rápido e esses cinco mil anos, se transformaram em cinco semanas de isolamento social. Mas esses cinco mil anos na caverna acabaram, no dia que um ou mais membros da tribo resolveram desistir de ficar lá dentro e resolveram ver o que tinha do lado de fora.

É isso que a gente tem de fazer agora. Temos de desistir de voltar pro mundo que a gente tava para ir para o mundo que a gente tem. O mundo antigo acabou e com ele nossos sonhos, carros zero quilômetros, vagas em multinacionais, jantares com menu degustação e viagens divididas em 12x sem juros para o destino dos sonhos. Muitas das coisas antigas não faziam mais sentido. Faltava a coragem de se aceitar que estava errado e quer mudar. Faltava o tempo para depurar essas decisões. Mas agora, temos tempo. Precisamos da coragem.

Temos problemas reais para resolver agora. Problemas que vamos resolver no coletivo. Pessoas precisam comer já. Pessoas precisam de casas agora. O inverno está chegando e temos milhares de corpos para esquentar no frio. Esses problemas são mais importantes e urgentes do que qualquer coisa e eles vão precisar que a gente desista dos pensamentos e crenças antigas para resolve-los.

Toda vez que eu desisti, algo incrível aconteceu. Não foi fácil. Doeu. Ainda dói. Mas eu não faria diferente, pois se eu não tivesse desistido, eu não estaria aqui escrevendo esse texto que eu mesmo preciso ler nesse momento.