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Milo Araújo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A corrida contra o relógio dos entregadores

Entregadores se juntam em unidade para buscar entregas - Arthur Stabile/UOL
Entregadores se juntam em unidade para buscar entregas Imagem: Arthur Stabile/UOL

17/12/2021 14h12

Acordei, abri a janela, um dia bonito. Bom, vou sair pra resolver minhas coisas. Marombeira que sou (brincadeira, ainda estou me acostumando com esse lance de frequentar academia) resolvi ir numa dessas lojas de equipamentos esportivos para comprar uns artigos. Estava animada com as aulas de natação que iria começar na semana seguinte. E como de praxe, minha primeira opção de locomoção é minha bicicleta. Convidei meu namorado para essa jornada e lá fomos nós.

Da minha casa até a loja, para minha comodidade e atual privilégio, é um caminho com ciclovia do início ao fim, podendo garantir toda segurança e tranquilidade no pedal, certo? Ledo engano. Nem a ciclovia pode te proteger cem por cento de se acidentar.

Estava indo na minha faixa tranquilamente quando, do nada, um ciclista entregador que estava vindo na direção contrária à minha resolveu virar à sua esquerda, que era uma faixa de pedestre, cruzando na minha frente apressadamente, como se fosse o Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas (daqui a pouco explico melhor a associação), e acabei colidindo na bicicleta dele e sendo arremessada por cima dele.

Olha, por sorte não foi tão grave quanto parecia no momento, mas foi um belo susto! Ele prontamente me ajudou a levantar, junto com meu namorado que me ajudou a me recompor. Nisso, averiguamos que a bicicleta foi danificada. O garfo da bicicleta, peça onde encaixa o pneu dianteiro, simplesmente entortou e não teria mais conserto, conforme meu namorado, mais experiente com a mecânica da bicicleta, pôde conferir.

O ciclista entregador desde o início se prontificou a irmos até uma bicicletaria para verificar os custos do meu prejuízo e arcar com as despesas. Localizamos uma próxima e lá fomos, mesmo sabendo que não seria qualquer bicicletaria que conseguiria repor a peça pois a minha bicicleta é bem específica, de catraca fixa, mas fomos lá para o desencargo da consciência e para comprovação do que havíamos falado para ele.

Chegamos lá e como era esperado os custos não seriam nada baixos, pois a peça não poderia ser consertada e teríamos que trocá-la, algo em torno de R$ 200. Quando ele ouviu o valor ficou bem preocupado — bom, era de se esperar. Imagino que ele deve ter feito todo o cálculo de quantos dias de trabalho seriam necessários para pagar. Mas desde o início não se negou a pagar e só repetia para gente que o repasse do aplicativo era semanal e que assim que o tivesse faria o ressarcimento.

Bom, voltemos ao Coelho Branco de Alice, lembra? Creio que a maioria deve conhecer a história, pelo menos por cima. Quando Alice encontra o Coelho logo no início, ele aparece dizendo "Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais!" olhando para um relógio de bolso que retira de seu colete.

Pois então, no momento que estávamos indo até a bicicletaria conversando ele me explicou que estava correndo para chegar ao ponto de retirada do pedido do aplicativo, pois se não chegasse a tempo seria bloqueado por até 40 minutos até entrar um novo pedido.

Nesse momento já sabíamos de quem era a culpa do acidente, não? Mesmo que a falha tenha sido humana, essas plataformas de aplicativos de entregas colocam os entregadores, "empreendedores", em uma disputa contra o tempo, colocando-os em situações de risco como essa que pude comprovar. Preferindo ser atropelado ou atropelar alguém para poder garantir o mínimo de ganho diário sem grandes prejuízos. E quando falamos mínimo é mínimo mesmo.

Segundo dados de uma das plataformas, 80% das entregas são feitas por "parceiros" que fazem mais de R$ 1300 de renda em um mês, fazendo uso do aplicativo por cerca de 120 horas no período — uma média de 4 horas por dia. Mas diversas reportagens e pesquisas mostram que eles passam de 8 a 12 horas na rua para garantir esse valor, sendo que a maioria dos entregadores vem da periferia para os grandes centros e passam o dia inteiro sem poder voltar para casa, mesmo tendo a autonomia de gerenciar seus horários de pausa.

Não é de hoje que vemos reivindicações dos entregadores por melhores condições de trabalho. Uma das plataformas recentemente criou um fórum para ouvir demandas da categoria. E firmaram uma carta de compromisso para atender as demandas. Mas, como dito em uma reportagem, enquanto os entregadores e os pequenos empresários, que também têm sido prejudicados por estas plataformas, não se unirem para construir as ideias em conjunto, as coisas continuarão ruins para os dois lados.

P.S.: Não tive coragem de cobrar o conserto da minha bicicleta do entregador e vou arcar com os custos.