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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Coleção de amores': vasculhando o afeto para além de contatinhos

Domínio público
Imagem: Domínio público

06/07/2022 06h00

Estamos bastante acostumades a ouvir e falar sobre termos nossos famosos "contatinhos", aquelas pessoas com quem na maioria das vezes mantemos uma certa frequência de encontro, seja ela qual for, para um sexo casual. Vasculhando as possibilidades de construção de rede de afeto dentro da perspectiva não monogâmica tenho me deparado com uma experiência que, no meu ponto de vista, vai para além dessa casualidade, e que tenho nomeado até então como minha "coleção de amores". Este nome, confesso, ainda não me é totalmente satisfatório. A ideia de colecionar, por mais que trate de reunir algo que nos seja de grande apreço e valor, ainda remete à ideia de posse, até mesmo à falsa ideia de que quanto maior a coleção, melhor, mas como ainda não encontrei uma palavra mais precisa seguirei me utilizando dela para o que quero refletir hoje com vocês.

O que chamo, por hora, de "coleção de amores" é a ideia de construção de relações diversas com aquelas por quem nutrimos não apenas interesse sexual, mas alguma profundidade de afeto. Experienciando a vida de forma não-monogâmica, buscando compreender como isso se dá para mim, vim percebendo que com algumas pessoas a relação que estabelecíamos não era somente para sexo casual ou alguém com que eu poderia sanar alguns desejos de carinho e tesão quando nos conviesse, mas de fato uma troca amorosa, algo recíproco que não se dissiparia com o tempo pela distância ou menor frequência do encontro. Longe de um "oi, sumido", a busca deste encontro se dá a partir do desejo de matar a saudade, de estar com aquelas que de alguma forma me nutrem e que percebo que este sentimento é recíproco.

Sou uma pessoa bastante apaixonável. Gosto de sexo, tenho meus desejos repentinos e casuais também, mas cada vez mais percebo o quanto estes encontros verticais, onde existe o interesse mútuo entre as pessoas de se conhecerem, dar e receber carinho, tesão, de vasculhar as intimidades conjuntamente me sustentam, me potencializam e me permitem construir uma rede de afeto para além do encontro momentâneo e passageiro. A intimidade, essa que muitas vezes fugimos quando buscamos uma foda para sanar o fogo, foi se tornando menos assustadora, permitindo que eu me conhecesse ainda mais nestes processos e também devolvesse essa possibilidade para quem compartilhasse comigo destes momentos.

Se vulnerabilizar, no melhor sentido desta palavra, é algo que desaprendemos no mundo em que vivemos. Revelar-se é perigoso, e se desvencilhar das armaduras cotidianas para ter um encontro mais profundo é também se colocar diante do risco da frustração, da decepção, de se machucar... mas como amadurecer nossas musculaturas emocionais, como potencializá-las se não as colocarmos em funcionamento?

Assim como a atividade física, que exige disposição e nos sujeita a possíveis lesões inesperadas, seja por desatenção, seja por um movimento mais brusco do que deveria, da mesma forma está nossa lida com os sentimentos e as relações interpessoais. É a prática que nos ensina os limites, e a mesma que nos permite também os expandir. Dessa forma, pouco a pouco, o que era perigoso vai se tornando conhecido e prazeroso. O que antes era impensável, vai adentrando nosso cotidiano de forma natural. E é exatamente através deste movimento que fui percebendo minha "coleção".

Longe de ter uma lista de possibilidades, fui me dando conta de que algumas pessoas que adentraram minha vida permanecem cuidadas aqui dentro. Mesmo que fiquemos anos ou meses sem nos encontrar, o reencontro se dá de forma potente, avassaladora, e repleto de afeto e interesse. Poderia, inclusive, chamar isto de amizade, e de fato sinto que com os amigos verdadeiros nutro sentimentos muito parecidos, mas neste momento decido por distinguir estes dois "status" pelo simples fato da intimidade sexual também estar em jogo.

Vejo o quanto isto muitas vezes assusta as pessoas. Na busca de uma troca menos superficial, automaticamente percebo a fuga de alguns, seja por medo de se expor, seja por pensar que num primeiro encontro eu talvez estivesse me apaixonando completamente. Não que eu talvez não esteja - e é por isso que busco o mergulho - mas a ideia de amor romântico tão enraizada pelo senso comum automaticamente pinta este interesse como atitudes "emocionadas", de alguém que busca um "relacionamento sério", quando na verdade só quero me divertir conjuntamente.

Perceber a formação desta coleção de amores tem, também, me permitido viver estas relações de forma mais leve, com menos sensação de posse, menos desespero pela constância, e com mais apreço por o que a outra pessoa causa em mim. Além disso, me faz ser ainda mais leve comigo mesma, pois me coloca frente a frente com meus sentimentos, com minhas responsabilidades afetivas comigo mesma e para com es outres. Sabendo da mutabilidade das coisas, a distância não mais me angustia, mas me faz perceber o amor contido também na saudade, que num próximo momento pode se transformar na retomada do encontro. A constância maior de uma ou outra destas relações também vai dissolvendo a ideia de centralidade, de hierarquia, e passa a me mostrar quem ou quais são as pessoas que querem, conseguem ou fazem mais sentido estarem próximas a mim e eu delas em determinado período da minha vida.

Dito isso, a ideia de término de uma relação também se dissolve na transmutação da mesma. Término talvez se mantenha possível no caso de uma falta de lealdade, em situações que alguém traia profundamente a confiança do outro e a continuidade de qualquer tipo de relação seja impensável. Mas caso contrário, o amor, o afeto e até mesmo o tesão podem ser transmutados, e a relação permanecer pautada nas coisas que continuam a fazer sentido para ambas as partes. Ah, como isso alivia nossos sofrimentos! Livres de precisar fazer concessões para alimentar a felicidade de outrem, os elos vão se mantendo através do que nos conecta, e não do que nos distancia. Ninguém deveria ser obrigado a abdicar de suas necessidades, das coisas que lhe fazem bem para nutrir a felicidade alheia.

Que possamos nutrir-nos através das mútuas potências, buscando abdicar de viver o que não nos faz bem, mas não abdicando do outro em sua completude, caso seja possível. Esperar que a outra pessoa nos satisfaça por completo e corresponda a tudo que precisamos é uma ilusão, e nem mesmo a monogamia é capaz de provar a funcionalidade desta falta de lógica. Cada ume de nós temos nossos desejos, anseios, necessidades, e eles mudam conforme nossas experiências nos atravessam, e a abertura para que as relações também se transformem é um possível caminho para acompanharmos nosso amadurecimento na real presença, sem adiar nossa satisfação. Colecionar amores, portanto, se estabelece como forma de distribuir e multiplicar afeto, e não como meio de possuir números, corpos... Colecionar amores como forma de nutrição, não como fast food.

De fato, não é simples estabelecer tal proposta como realidade. Não depende apenas de nós, mas de encontrar pessoas que compartilhem em algum grau do mesmo interesse e visão de mundo, e dadas as normativas relacionais que regem nossa sociedade isso acaba sendo muito menos frequente do que gostaria. Mas, dados os aprendizados pelo caminho, os números fazendo menos sentido e a potência destes raros encontros se mostrando tão belas, a solidão vai pouco a pouco se tornando solitude, a carência ganhando forma no aconchego e a graça de um novo amor ou o cultivo dos que já existem, se revelam muito mais valiosos do que a caça desesperada para tapar os buracos mal desvendados de nós mesmos.