Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
BBB: Estaria Lina abusando de Paulo André? O buraco é bem mais embaixo!
Nesta última segunda-feira (28), no Big Brother Brasil, pudemos assistir à retrospectiva dos acontecimentos após a formação do paredão da semana. Lina, a atual líder, havia indicado Paulo André e, logo após o final do programa de domingo, Arthur trouxe um comentário para seu parceiro de jogo que causou alvoroço para alguns e desconforto para outres. No quarto grunge, com Paulo André ainda incomodado com a indicação, Arthur traz para a conversa o fato de Lina e PA brincarem entre si e se provocarem com possíveis flertes. Porém, em vez de tratar de como a relação dos dois tem se estabelecido e de como essas brincadeiras — tendo um fundo de verdade ou não — partem de ambos, ele se aproveita de um momento de irritação e fragilidade do amigo para sugerir que Lina estaria em alguns momentos passando dos limites, supondo (mesmo sem usar essa palavra) que ela estaria sendo abusiva com o brother e que, se as brincadeiras acontecessem por parte do PA, ele já estaria cancelado aqui fora.
Me chamou a atenção Arthur trazer esse assunto sem haver nenhuma conexão com o que estavam conversando. PA, obviamente mexido com o fato de estar no paredão, chegou a concordar com o amigo, mas precisamos levar algumas coisas em consideração para não cairmos num problema grave e recorrente: a transfobia.
Lina e PA vêm se aproximando cada vez mais dentro do jogo e esse afeto acontece recheado de humor e intimidades. PA provoca Lina, Lina provoca PA, como se ambos estivessem flertando e isso nunca se mostrou um problema — e, principalmente, nunca se tornou um desconforto aparente por parte de nenhum dos dois. É preciso frisar que o fato de Lina ser uma travesti faz com que seja muito mais difícil que algo desse tipo aconteça naturalmente em relação a um homem cisgênero. Os dois, com uma safadeza delicada, digna de quem talvez não se preocupe com esses marcadores sociais na construção do afeto, vêm mostrando no programa que isso é possível e que inclusive o flerte — seja ele real ou não — pode ser algo natural na vida de uma travesti negra. Porém Arthur parece não gostar disso.
Esteja ele realmente incomodado com a intimidade dos dois ou apenas se utilizando de uma manipulação afetiva para afastar PA de Lina no jogo, ele agiu com argumentos bastante transfóbicos. Em primeiro lugar, acusar Lina de estar assediando PA, "passando dos limites", denota que para ele suas brincadeiras são invasivas, desnecessárias. Em segundo, querer impedir que os dois troquem afeto, mesmo que por estratégia de jogo, direta ou indiretamente resulta em mais uma vez privar uma travesti destes carinhos, algo que a sociedade tenta fazer cotidianamente com pessoas trans. E em terceiro lugar — e talvez o pior ponto — é que o brother, ao dizer tais coisas, acusa Lina de algo bastante grave, não só sugerindo uma má conduta da cantora como também colocando-a num lugar estigmatizado e fetichizado, ou seja, realocando-a no mesmo lugar que a transfobia estrutural sempre nos coloca: um corpo impassível de afeto, um corpo violento, agressivo, erotizado... um corpo, portanto, desumanizado.
Não busco nesta reflexão exacerbar uma conversa breve entre os dois amigos, mas acredito ser de extrema importância a reflexão sobre as colocações de Arthur. A transfobia estrutural é ardilosa, é violenta e nos mata diariamente, seja diretamente ou indiretamente, quando nos afasta e nos impossibilita de construir essas relações de intimidade. Ver Lina e PA se provocando é um deleite, tanto por podermos assistir aos dois trocando carinho quanto, num sentido macro, por vermos em rede nacional um homem cisgênero negro e uma travesti negra trocando afeto, se envolvendo e, para nos deixar coçando de curiosidade, construindo um cenário onde facilmente conseguimos imaginar os dois tendo uma relação amorosa e/ou sexual.
Não acredito que PA tenha tamanho desprendimento dos reflexos da transfobia estrutural para ficar com Lina dentro do programa, ainda mais pelo fato de ter se relacionado com Jade Picon lá dentro, mas fica para nós pelo menos o gosto de poder imaginar estas possibilidades, estes desdobramentos de um carinho que os dois vêm construindo dia após dia.
Sobre Arthur, estamos acompanhando suas máscaras caindo a cada dia. Um garoto branco cisgênero que no começo criticava com unhas e dentes Rodrigo por só pensar em jogo e não conseguir estabelecer relações profundas e que hoje faz o mesmo - se não pior. Não cabe a mim falar da vida pessoal do ator fora do programa, muito menos querer compreender todo seu caráter dentro de um jogo televisionado, mas que esta movimentação dele foi desrespeitosa e transfóbica, disso não tenho dúvidas.
Enquanto nós construímos aqui fora, dia após dia, estratégias para combater a transfobia, ele e muitos da nossa sociedade jogam este jogo ardiloso, contribuindo para a nossa estigmatização e marginalização, mesmo que esse não seja seu foco primal. Estigmatizar um corpo travesti nem sempre é uma intenção direta, mas a transfobia é tão bem-vinda para a cisgeneridade que, quando uma pessoa trans ameaça seus interesses ou privilégios, ela muito raramente hesita em usufruir de tais mecanismos para se manter no patamar de superioridade e nos descartar do jogo.
Que possamos aprender mais com homens como Paulo André. Que o afeto e o flerte com as travestis seja algo naturalizado mais e mais a cada dia e que os homens cisgênero aprendam que quando uma de nós retribui ou até mesmo inicia tal movimento não se trata de um abuso, mas simplesmente do mesmo jogo que a cisgeneridade sempre jogou - o jogo da sedução, seja ela sexual ou não.
Portanto, para finalizar, deixo uma pergunta: se Lina fosse uma mulher cisgênera e branca, será que o Arthur diria tal coisa sobre ela?
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