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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nem sempre é simples continuar...

Vaca descansando com um moinho (1888), pintura de Richard Roland Holst - Rijksmuseum
Vaca descansando com um moinho (1888), pintura de Richard Roland Holst Imagem: Rijksmuseum

26/01/2022 06h00

Nem sempre é simples continuar...

Por vezes sentar em frente ao computador e escrever um texto ou cumprir com um compromisso firmado se torna um fardo, um desafio ou uma tormenta. Ao mesmo tempo que manter a escrita viva semanalmente sirva de colete salva-vidas, também se desgarra de mim este salvamento quando o caos interno é maior.

Interno?

Pergunto-me, pois essa bagunça, essa ansiedade que chega desavisada não é um fantasma meu, mas um combo de violências, exigências e insuficiências direcionadas a mim.

O cotidiano, um desafio.

As demandas, sempre altas, exigidas pelo mundo e por mim mesma, seja para cumprir com a norma e permanecer viva, seja por não querer cumprir - POR EU NÃO QUERER, NÃO PODER ME PERMITIR DESISTIR E/OU SUCUMBIR ÀS VONTADES DA ESTRUTURA.

E por fim a insuficiência!

É! Insuficiente a sanidade ou os aparatos vigentes para mantê-la. Poucos conseguem, e porque então eu, uma travesti brasileira, nascida e criada num território onde querem a todo momento me capturar - seja para me matar, me consumir ou para me vender, lucrar - conseguiria me manter altiva a todo momento?

Sempre tive minha fragilidade como aliada. Meu cansaço, meu descanso, meu nervosismo, raiva, minha estafa... sempre me aliei aos sinais da exaustão de forma a não permitir que ela se desse por completo, que o cuidado chegasse antes da derrota. E assim sigo, porém nem sempre é simples continuar.

O mundo capitalista não aceita a pausa. "Tempo é dinheiro" - repetem pelos cantos aos montes - e o nosso tempo é escasso, roubado, breve. Conseguir descansar é também conseguir sobreviver, é também estratégia de combate e arma contra o que a estrutura prevê para uma corpa como a minha.

Hoje estou aqui, mais uma vez escrevendo. Cansada, ansiosa, quase derrotada, e necessitada do valor deste tempo para pagar meus aluguéis, meus alimentos, meus alguns momentos de não produtividade. Na necessidade de cumprir, mais uma vez, aciono as que até aqui me trouxeram, os que estão ao meu lado e me proponho a subverter o compromisso - pelo menos a tentar. O que poderia ser fardo - e é, pois o corpo está pesaroso e a mente mais que ele - tento transformar em recado, para que eu possa, palavra a palavra, me escutar de novo, e que você possa talvez compreender uma coisa que nem sempre consigo comunicar:

NEM SEMPRE É SIMPLES CONTINUAR... e não quero que isso se torne uma constante - a falta de simplicidade - mas também não desejo nunca poder parar.

Não peço que me compreenda, pois tudo que menos desejo agora é exigir algo de você ou de mim, mas espero que me escute. As vezes só precisamos que alguém escute... Sem certezas, respostas, opiniões ou resoluções propostas. Para que as palavras sirvam de enxurrada para escoar os atritos, os nervos, e amanhã ou depois algo se evidencie melhor. Para que eu me evidencie melhor. Para que você seja evidência, ou prova, ou simplesmente testemunha de que nem sempre é simples continuar.

É irônico escrever sobre isso. Eu, aqui, em movimento, falando da necessidade de parar, pausar, suspender. É isso que a máquina social faz com a gente... a engrenagem - nós - pensamos em descansar enquanto giramos e continuamos a desgastar nossos dentes.

Meu maxilar está tenso. Meu bruxismo oscila, mas persiste. A boca do estômago às vezes queima. O corpo formiga. O choro irrompe quando menos espero. Mas sigo aqui, chorando à mostra para que amanhã não chore sozinha, isolada, com sede.

Meu maxilar está tenso, meus dentes gastos, mas ao menos tenho comida para me manter de pé.

Nem sempre é simples continuar, mas seguir já não é questão de escolha.