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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lula e Linn: como a cisgeneridade não compreende as vivências trans

Linn da Quebrada e Lula debatendo no programa “Triangulando”, de Thelma Assis - Reprodução
Linn da Quebrada e Lula debatendo no programa “Triangulando”, de Thelma Assis Imagem: Reprodução

08/09/2021 06h00

No dia primeiro de setembro pudemos acompanhar a live "Triangulando", apresentada por Thelma Assis em seu próprio canal do YouTube. Com a presença de Celso Athayde, Linn da Quebrada e do ex-presidente Lula, a live com mais de duas horas de duração nos apresentou, dentre diversos assuntos, perspectivas riquíssimas sobre a importância do incentivo às populações marginalizadas através da redistribuição de renda e de oportunidades. Saúde, educação, emprego, pilares que constituem e possibilitam a dignificação do ser humano na sociedade foram temas bastante pautados, com grande enfoque na população pobre, periférica e principalmente não-branca. Porém, o assunto esquentou quando pessoas LGBTIA+ se tornaram foco do debate.

Se aproximando do final do encontro — que durante seu acontecimento chegou a atingir o primeiro lugar nas hashtags do Twitter — um internauta perguntou ao ex-presidente o que ele tinha a dizer sobre uma foto do mesmo junto ao pastor Isidoro, conhecido por se dizer ex-gay (sic.) e a favor da tal "cura gay". Esse questionamento levou Lula a um discurso pautado na tentativa de diálogo, em insistir na possibilidade de fazer pessoas que pensam como Isidoro — inclusive o próprio pastor — reconhecerem o absurdo que estão propagando.

É indiscutível que o discurso sobre a "cura-gay" atua no âmbito da desinformação e do ódio — essas duas características que andam sempre juntas. Essa falácia, que já há alguns anos vêm ganhando destaque nas falas de pastores e políticos conservadores, têm servido para propagar ainda mais a aversão às pessoas dissidentes sexuais e de gênero — sim, de gênero também, porque dado o tamanho da ignorância destes que defendem a cura (sic.), para eles, gênero e sexualidade são a mesma coisa. Pessoas trans independente de sua sexualidade e pessoas cisgênero gays, lésbicas, bissexuais e inclusive heterossexuais se tornam vítima de um discurso de repressão sexual e de gênero que está impregnado na sociedade há milhares de anos, fruto principalmente do cristianismo e suas estratégias coloniais.

É complexo quando tocamos nesse assunto porque, aparentemente, as opiniões surgem com ares de minimizar a importância de discutirmo-lo ou na verdade revelam a desinformação inclusive por parte de pessoas cultas e com tamanha compreensão das estruturas sociais como Lula.

Após a pergunta do internauta, visivelmente pudemos acompanhar a implicação de Linn em debater com o ex-presidente esse assunto tão importante e tão colocado de escanteio. Assunto que intersecciona vivências brancas, negras, ricas, pobres, ou seja, todos os recortes da nossa população, mesmo que de formas diferentes.

Não tenho o intuito de com esse texto dizer que Lula é homofóbico, transfóbico ou algo do tipo, muito menos criar polêmica sobre algo que me é tão caro, mas é de extrema importância que analisemos o teor da discussão que pudemos assistir. Lula insistiu em sua necessidade enquanto cidadão de buscar sempre o diálogo e Linn, travesti, negra, artista e consciente da realidade que vive, tentava de diversas formas fazer com que ele entendesse a impossibilidade desse diálogo na maioria das vezes - com pessoas como Isidoro, por exemplo - e que, diferente de outras questões que denotam apenas divergências de opinião, nesse caso se tratava de um discurso de ódio que violenta, marginaliza e mata cotidianamente pessoas trans nesse país.

Por mais que eu saiba que o ex-presidente Lula é alguém implicado realmente em olhar e lutar pelas populações mais marginalizadas, me interessou observar sua recepção para com as palavras de Linn. Assisti em seu semblante e em suas respostas à artista a mesma falta de compreensão que assisto na reação da maioria das pessoas cigênero e brancas quando o assunto é sobre pessoas LGBTIA+. Fica evidente que, de uma maneira geral, nós enquanto sociedade já entendemos que há uma dívida histórica para com as pessoas pretas e indígenas — salvo quem tenta ainda se manter em sua alienação branca-burguesa para benefícios próprios — porém ainda percebo um vazio, um gap, um grande nevoeiro quando falamos sobre vidas LGBTIA+.

Em se tratando de pessoas trans, temos registros que provam a existência de mais de dois gêneros em grande parte dos povos indígenas que habitavam essas terras antes da colonização portuguesa. Inclusive temos registros sobre Tybyra, pessoa indígena dita dissidente sexual e de gênero que foi assassinada pela inquisição no Brasil (primeiro registro de assassinato por LGBTfobia na colônia). Também conhecemos a história de Xica Manicongo, travesti negra trazida de África e que conseguiu viver sua identidade de gênero no Brasil, mesmo sendo escravizada. Por que então ainda é tão difícil considerarem e compreenderem a gravidade da nossa marginalização social?

Nós, pessoas trans, passamos por um apagamento histórico tremendo. Nossas vivências por muito tempo foram chacinadas, ao ponto de nos fazer esquecer de nossas memórias, inclusive de que no período pré-colonial - e ainda em algumas civilizações atuais - muitas vezes pessoas que não se enquadravam nos gêneros binários (homem/mulher) eram consideradas líderes espirituais, valorizadas socialmente. Quando hoje pautamos nossas necessidades, discursamos sobre como a sociedade em geral não nos enxerga nem mesmo como humanas, as pessoas aparentam realmente não acessar o que falamos.

Você já sentiu que tentava dizer algo muito nítido para alguém e, por mais que tentasse de diversas formas essa pessoa não conseguia te entender? Pois bem, é dessa sensação que falo, mas não apenas sobre um assunto ou acontecimento específico, mas sobre a realidade que abarca pessoas LGBTIA+ no Brasil.

Com certeza esse é mais um reflexo dessa desumanização que sofremos. Vivemos uma realidade tão paralela nesse país em relação às pessoas cisgênero que é muito difícil elas nos acessarem. Realmente são dois mundos muito distantes coabitando, vivências muito distintas, e somente com o nosso avanço nos mais diversos espaços de trabalho, convívio e luta por direitos que vamos conseguir talvez fazê-los acessar nossas palavras com mais profundidade. E não é por falta de tentativa nossa que essa percepção não acontece.

Se olhamos para a história da escravidão no Brasil, tão recente e que ainda influencia totalmente em como nossa sociedade opera e marginaliza pessoas não-brancas, podemos enxergar hoje o absurdo desse processo e suas consequências. Precisamos agora olhar para essa história buscando reconhecer os rastros que ainda possuímos sobre as vivências trans e LGBTIA+ em geral! Fomos tão massacradas que as pessoas ainda nem nos reconhecem enquanto humanas, como Linn bem frisou no programa. Fizeram-nos esquecer nossos nomes, nossos feitos, nossas singularidades. Tentaram nos enquadrar dentro da cisheteronormatividade, mas é impossível suprimir totalmente o que é genuíno do ser humano.

O mesmo processo de violência que a colonização direcionou para os povos indígenas e negros também nos atingiu, independente de nossa etnia, e assim como estes também estamos num movimento de resgate, de reescrever nossa história, de rememorar nossa transcestralidade e honrá-la com toda a integridade que nos comporta. Os ouvidos continuam tapados para nós. Lula não é o único com dificuldade, aposto que se você olhar com mais atenção vai perceber que também nos olha assim, como se fossemos nós que não estivéssemos te entendendo. Mas nós estamos! Nós entendemos muito bem o que se passa, só precisamos agora que vocês nos ouçam, nos leiam, e percebam que mais do que uma história bem contada, precisamos de ouvidos atentos e interessados em ouvi-la.