Topo

Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quanta poesia cabe em uma jabuticaba?

Bíblica (@bruxa_travesti) - Foto por Bibi @bibidenelson
Bíblica (@bruxa_travesti) Imagem: Foto por Bibi @bibidenelson

04/08/2021 06h00

Há quatro anos resolvi cultivar em vaso minhas companhias
Não para limitar seus espaços em minha vida,
mas para poder levá-las comigo caso me mude.
Mês a mês
Ano a ano
plantando cada espécie possível para ver se nos dávamos bem.

Comecei com as mais fáceis
Aquelas que não precisam de muita água
Suculentas
Espadas
Das que faça chuva ou muito sol, permanecem resistentes e vivas ao meu lado.
Depois uma hortaliça
Um tempero
Um ornamento
Até que vieram as frutas, das quais eu sonhava me alimentar.
Pouco a pouco minha laje
Que antes de nós era cinza
Agora suja de terra e com um protótipo de pomar.

Aprendo tanto observando
Suas diferenças
Suas texturas
Poderes.
Cada uma única em sua beleza e potência.
Olhe só o abacaxizeiro, que bichinha curiosa
É da família das bromélias
Mas também possui espinhos
Protegendo um único fruto que cada planta dá!
Eu também teria espinhos, se minha parte mais preciosa fosse assim tão singular.

Gosto de assistir os processos
De como um pequeno galho colhido
Plantado devidamente
Pode virar uma árvore inteira
E a divisão
O desmembramento
Que pra nós é tão violento
Se torna multiplicação
Basta o cuidado certo
A atenção e o amparo
Para que o pititico galho
se torne um mulherão

Mas não é só de beleza que vivem as moças.
Tem fungo, praga
Tem hospedeiro que mata
Tem coisas que nossos olhos nem enxergam
e que insistem em fazer sucumbir.

Eu
Por vezes ansiosa, desesperada
Quero logo abandonar, jogar no lixo
quando vejo quão delicada é a vida.
Vontade de desistir
De não buscar a raiz
Do problema.

Hoje olhei pra jabuticabeira, que chegou tão exuberante, ganhada de alguém que sabe do meu apreço pela vida
A bonita ficou doente, tive que podar
mês atrás, quase pelada, achando eu que perdida
Voltou a renovar a vida e hoje
grávida da novidade como um adolescente percebe sua primeira espinha
Púbere
me mostrou sua primeira fruta
única
inicial
Que ainda não me permiti chupar.

Quão doce será que está essa primeira obra criada?
Me lembro do sabor dos meus primeiros ímpetos
meus primeiros poemas aos 14
minha primeira peça de teatro aos 12
meu primeiro arranhão.
A dúvida era maior que a concretude do feito
Mas ao mesmo tempo
proporcional era o entusiasmo
A admiração.
Minhas rimas, que os cultos diriam pobres
Eram doces e roxas
Redondas
E nascidas de uma profunda vontade gozar

Perdi a virgindade aos 19
Talvez tardia em relação ao melão que teve quatro filhos em um mês
Que trepou pelos muros de casa
Mas que morreu tão cedo quanto sua pressa de ter respostas.
Não tinha se adaptado ao solo
Ou foi acometido por uma doença que não teve anticorpos para se defender
E eu
Que me achava atrasada
Hoje proporcionalmente livre dou
O que quero dar
Sabendo dos riscos que corro quando me plantam sem pedir licença

E por falar em sexo
As trepadeiras, olhe só
Que tanto pensam ser apressadas e insaciáveis
Que dominam as praças dos bairros
São as mais discretas no crescimento
As mais insistentes
e que por vezes já julguei mortas, mas do pequeno caule que sobra
Da raiz do fundo do vaso
Voltam a mostrar suas folhas
Novas
Prontas pra outra luz
Outra chuva
Outra rega.

Talvez elas sim saibam morrer direito
Não de um jeito cristão, triste
Sacrificado ou penitente
Morrer como renovação
Morrer para recomeçar
Mais forte
Vibrante
Agora sabendo mais sobre o solo que as nutre e o quanto conseguem se desenvolver ali.

Minhas amigas me ensinam diariamente sobre a vida
E o que seria de mim se não lhes oferecesse ao menos o sabor das minhas jabuticabas?