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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Teu ódio não é erótico: o Homem Cis e a Trava

Faca; facada; arma branca - Getty Images
Faca; facada; arma branca Imagem: Getty Images

12/05/2021 06h00

Começo esse texto de hoje no intuito de apresentar a vocês uma espécie de trilogia dos "afetos", em que irei construir perspectivas dentre as próximas semanas sobre as relações que comumente vêm se estabelecendo na nossa sociedade para com as corpas trans, mas não só. Coloco os afetos entre aspas porque no texto de hoje é exatamente a falta deles que transbordará.

Muito se fala, entre manchetes, reportagens de TV e posts na internet sobre as travestis e suas mortes, sobre os assassinatos desmedidos que vão de 15 facadas - ou mais - aos casos mais bizarramente criativos, que vou me abster de citá-los. Litros e litros de sangue que escorrem pelas páginas e programas, lavando a sala da casa dos espectadores, porém parece que o público tem gostado dessa cor na decoração. O vermelho tem caído tão bem nesses corpos que muito se fala sobre suas misérias, mas pouco sobre seus (des)amantes.

Homens de terno e gravata, soldados fardados, transeuntes anônimos nas ruas da cidade que não se sabe bem de onde vieram, mas definitivamente se sabe o objetivo que carregam. Faróis que passam repetidamente pelas esquinas buscando carne malhada, mas com cara de fresca, pra jantar ou até mesmo saciar seu café da manhã pré-serviço, para partir para a empresa mais relaxado depois de uma esporrada. Barganhas e mais barganhas. Sempre a tentativa de conseguir o boquete ou dar aquela "furada" pelo preço mais baixo possível, dado que em seus lares muito provavelmente não exercem seus tesões com plenitude. E, aí, eu pergunto - de acordo com os ensinamentos de Diran Castro - esse preço é do corpo consumido ou do próprio cliente que o busca? Esses 10 arô pela chupada tá mais pra quanto vale o pau do que a boca paga!

Seja na prostituição ou na promessa de namoro - que nunca se concretiza - continuamos a assistir a incapacidade do homem cisgênero de oferecer afeto e respeito às travas brasileiras. Ouso dizer que vemos em seus comportamentos em relação à essas mulheres uma lupa aumentada, uma versão ampliada dos truques e desfeitas que já praticam com as cisgêneras há muito tempo, como se tudo que não é um homem não merecesse uma gota de sua honestidade e carinho.

Mas onde está o maior nó, que faz com que essa realidade aumentada seja tão presente nas relações postas? Por que procuram tanto as travas pelos becos e noites escuras, por detrás de seus insulfilmes com medo de serem reconhecidos, e com uma frequência incalculável? Dizem ser "só ativos", mas na hora H viram a bunda. Se pagam tanto de machão, mas adoram pedir para pôr uma calcinha. E nada contra gostarem de praticar sexo anal ou vestirem o que bem entenderem, acho belíssimo assistir as máscaras se desfazerem e poder ver o ser humano pleno de seus desejos, saciando seus prazeres. Mas por que essa vergonha toda, e por que descontá-la nas manas, que nada têm a ver com isso? Por que esse medo constante, inclusive, de ter lido enquanto gay, sendo que continuam se relacionando com mulheres? - é, a homofobia e a transfobia andam juntas, apesar de serem coisas bastante distintas.

Legiões de pais de família e filhos e parentes que mentem constantemente sobre seus mais genuínos desejos. Seria tão mais simples se recebessem um beijo em público e não ficassem de olhos abertos com medo de serem flagrados. Pois não é só com as putas que o sigilo rola, é no dia a dia também daqueles que falsamente assumem seus amores, mas apenas entre quatro paredes e sem testemunhas por perto. Qual o problema de falar de boca cheia "eu amo uma travesti"? - olha lá, hein? Se criticar esse afeto que estou propondo já sei bem de onde você fala.

Converse por um dia inteiro com uma travesti vivida e saberá mais sobre a sociedade do que estudando por anos em qualquer universidade. Entenda o patriarcado, a hipocrisia dos vínculos familiares tradicionais, a superficialidade que os homens cisgêneros entregam ao mundo. Saberá que mais profundo é o arcabouço de artifícios que eles arranjam para não assumirem suas justas vontades. E, mais, entenda que esse medo de serem "desmascarados" é exatamente o que faz o sangue delas continuar a escorrer.

Dicotomia: Brasil, o país que mais mata pessoas trans no mundo e também o país onde mais se assiste pornografia com corpos trans. Um fetiche absurdo que só sacia o gozo ligeiro do macho e tem levado ano após ano milhares de vidas pelos ralos.

"Travesti morre assassinada pelo namorado". "Após descobrirem relacionamento com travesti, xxxxxx mata a namorada e foge". Famosos e mais famosos transformados em chacota nacional por terem sido "flagrados" com essas travas. Ronaldos, Romários, Alexandres e muitos outros que poderiam assumir declaradamente seus desejos e afetos, mas não o fazem, pois o custo de assumir uma travesti socialmente é muito grande, e é essa pressão social, essa repressão que torna a transformar essas mulheres em vítimas de crimes de ódio.

Se as novelas nos apresentam o melodrama dos romances cisgêneros, essa relação com as travas, na vida real, está muito mais próxima da tragédia, e a desmedida dessa narrativa não leva o próprio personagem central dessa trama, o homem, a lidar com as consequências, mas derrama toda a responsabilidade naquela que por muitas vezes nem está mais aqui para contar a sua história. A incapacidade de amar mata! A incapacidade de enxergar a humanidade dessas travas faz com que as que continuam vivas bebam diariamente da solidão e do desafeto por parte desses homens. Sim, por parte deles, porque existe um mundo possível para além dos muros da cisgeneridade, mas esse assunto vou deixar para o próximo texto.

Hoje meu intuito era trazer o foco para essa relação defeituosa e desequilibrada que vem se repetindo há muito tempo entre homens cisgêneros e travestis, e não por responsabilidade delas. Uma sociedade que coloca esses homens em pedestais, como se fossem do mais alto escalão, muitas vezes descarta de primeira a possibilidade de não buscarmos neles o afeto tão procurado, o beijo e o pedido de casamento que a novela das nove tanto promete para os finais felizes. Esse beijo foi reservado, como conta a dramaturgia, apenas para as mocinhas cisgêneras, e que mesmo elas, como vemos acontecer, também são alvos de ódio e servidão fora das telas.

Esses homens não são estranhos. Esses homens são seus filhos, seu marido, seu pai. Esses homens são os mesmos que não aparentam sinal algum de que poderiam estar se relacionando com travestis, seja por afeto ou por consumo na prostituição. E exatamente por não aparentarem sinal algum, continuam a gastar o ódio nessas que a sociedade insiste em destituir do posto de humanidade. E por mais que pareça que a responsabilidade sobre essa realidade é apenas deles, insisto aqui que é de todas as pessoas. Os pais e mães que não aprenderam e, portanto, não ensinam o afeto às travas. Os tabloides, escritos por profissionais que insistem em tirar sarro de quem as ama e delas mesmas. Os pornógrafos que sempre colocam essas mulheres em filmes para serem violentadas no sexo, como bonecas infláveis.

É difícil e árduo o trabalho para restituir a qualidade de humana para as travestis. É um trabalho de revisão secular, estrutural, que desembaralha fios de todos os âmbitos da nossa sociedade, mas um trabalho necessário e urgente. É urgente que parem de nos matar. É urgente que nosso afeto seja valorizado. É urgente que nos ouçam, pois podem ter certeza que muito temos a ensinar sobre vocês.

Nós, travestis, ainda havemos de construir uma outra noção de sociabilidade. Esse trabalho já começou, talvez você não esteja vendo, mas daqui posso dizer que o mundo tem se mostrado muito mais interessante, apesar das dores.

Fica aqui comigo, não foge, não. Esse papo de afeto e tesão tá só começando e se a gente embarcar junto nessa pode crer que vamos chegar muito além. Te espero na semana que vem, tá?