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Mariana Belmont

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A queda do céu nas cidades

Divulgação
Imagem: Divulgação

24/02/2022 10h15

As imagens de cidades arrasadas, cheias de lama. Percebe que nos últimos poucos anos os lugares foram soterrados por lama? Mariana, Brumadinho, cidades e mais cidades sem poder respirar. Vou ali sentar na praça e de repente uma história acaba.

As imagens desde o final do ano me parece uma ilustração do relatório do IPCC, é como se fosse um anexo "Vejam aqui um exemplo do que pode acontecer com as cidades". E acontece, acontece com os mais pobres, com as pessoas que não esperam, que não sabem.

Mas imagina, essas cidades destruídas. São vidas, são pessoas, são histórias, são livros, são imagens, são objetos pessoais guardados de uma vida. A gente perde o material e o simbólico. A gente perde tudo quando a chuva chega. Que vida.

É uma vida simbólica que morre.
Um álbum de fotos no mar de lama, não é só prejuízo material, é um apanhado de vida.

Eu fico repetindo essa palavra "vida" sempre que vejo as imagens.

Levantei da cama agora para escrever esse texto, porque enquanto olhava minhas redes sociais me deparei com mais imagens de terra arrasada em Petrópolis. Em um post do jornalista Flávio Costa, aqui do UOL, havia uma livraria e na calçada centenas de livros empilhados cheios de lama. Uma dor, uma tristeza e uma imensidão de terror.

Levantei e fui até a sala pegar meu livro de cabeceira "A queda do céu", incrível Davi Kopenawa, sentei na cama e abri. Abri aleatoriamente para achar um pedaço de algo que lembrava e que rabisquei, porque esse livro virou um documento de consulta, ele anda comigo pela casa. Abri na página 194, vou reproduzir abaixo:

"O céu se move, é sempre instável. O centro ainda está firme, mas as beiradas já estão bastante gastas, ficaram frágeis. Ele se torce e balança, com estalos aterrorizantes. Os pés que sustentam nos confins da terra tremem tanto que até os xapiri ficam apreensivos! Um deles, porém, o espírito macaco-aranha, mostra ser de todos o mais corajoso. Vindo de muito longe, ele é sempre o primeiro a segurar os pedaços de céu que se desgarram e a tentar reforçá-lo. Não é um macaco da floresta, é um ser celeste, um espírito antigo e poderoso de mãos muito habilidosas. Ele no entanto não conseguiria fazer esses consertos sozinho. Muitos outros espíritos o auxiliam, como os do macaco-da-noite, do jupará, da irara hoari e do esquilo wayapaxi. Mas ele também chama como reforço os espíritos celestes hutukari, os espíritos raio yãpirari e os espíritos trovão yãrimari".

Marquei esse trecho de caneta forte, fui reler para ver qual sentido era.
Guardar as nossas histórias, seja de forma presencial, dentro de uma gaveta, ou na oralidade, é de uma riqueza. A história dos nossos e de como chegamos aqui são riquezas em que não pensamos direito, mas são nossa identidade.

O álbum de fotos que a gente abre no almoço de domingo, as fotos sem álbum e soltas e a conversa sobre um tanto de vida que se passou, a estrada. Quem chegou aqui primeiro, quando eu cheguei aqui, um pedaço de papel de algum momento, esquecido. Uma bíblia bem amarelada que guarda dentro uma santinha e uma foto de alguma criança pequena que hoje adulta não sabe que amanhã será arrastada por um mar de lama.

Alguém que não faz ideia, mas pode desaparecer sem deixar rastros de um passado deliciosamente importante. Não são números, são histórias, oralidades, tradições e uma força no braço para carregar um álbum de casamento tão importante.

Pensando nas famílias da Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Pará e Rio de Janeiro, nas cidades completamente abandonadas pelo Estado. Um Estado do deixar morrer, que sabia, previa, foi avisado, mas preferiu não olhar para isso. Pensei na minha família, na minha madrinha que saiu cedo do Nordeste e carregava com ela uma bolsa com fotos de sua família, coisa que ainda guardamos.

A chance de registrar a memória de suas famílias é um privilégio dos ricos, que não morrem assim aos montes, como os pobres e negros desse país.

A queda do céu nos ensina tanto.

Um povo inteiro tratado como mercadoria, como parte de negócios e números para recursos. A imprensa dá a notícia errada, a imprensa não fala, o Estado não se importa.

Eu quero um país que preserve a vida, a existência e que proteja histórias. Os livros, a bíblia com as folhas amareladas, as fotos, o poder simbólico das histórias contadas por pessoas que podiam estar vivas, o paninho de crochê que está ali como símbolo de uma vida inteira para viver e dizer como chegou ali.

Abraço em cada família, cada pessoa e cada organização empenhada em fazer o que o Estado negligencia.