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Mariana Belmont

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Os homens brancos na sala de jantar

Michel Temer ri de imitação do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) - Reprodução
Michel Temer ri de imitação do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) Imagem: Reprodução

Mariana Belmont

23/09/2021 06h00

Vou pular o discurso da abertura da Assembleia Geral da ONU dessa semana, acho que não precisamos relembrar mais essa.

Era madrugada de terça-feira (14) quando assisti o jantar de homens velhos, brancos e ricos, gargalhando em volta de uma mesa cara, com comidas e bebidas caras. Todos sendo servidos por pessoas provavelmente pobres. No mesmo instante lembrei de um clipe do Emicida chamado "Boa Esperança".

"Por mais que você corra, irmão

Pra sua guerra vão nem se lixar

Esse é o xis da questão

Já viu eles chorar pela cor do orixá?

E os camburão o que são?

Negreiros a retraficar

Favela ainda é senzala, Jão

Bomba relógio prestes a estourar..."

Emicida

Você já assistiu esse clipe? Ouviu essa música? Então veja agora cada pedaço desse clipe. Ele é genial, do começo ao fim é de uma genialidade absurda. O vídeo é de 2015, uma verdadeira aula de História, os brancos (e ricos) são servidos por mãos negras e pobres que só têm acesso aos restos e ao desprezo. Não sei, não vi quem estava servindo no jantar da semana passada, mas vejo algo bastante semelhante aí.

Eram velhos, brancos e ricos, poderia só ser um pesadelo, mas foi um jantar na casa do empresário Naji Nahas, em São Paulo, servido para o ex-vice, ou depois do golpe, do ex-presidente Michel Temer. Os homens brancos esbanjam gargalhadas diante de uma imitação do atual presidente da república, que para a burguesia com classe e educação refinada é engraçado, é tosco e é apenas uma marionete.

Não houve digestão desse jantar ainda, pelo menos para uma população sem comida na mesa e sem emprego. A imagem desse encontro é violenta para um país que soma 14,4 milhões de pessoas, segundo dados que fazem parte da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, divulgada hoje pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Violenta para um país com 19 milhões de pessoas que passam fome, segundo dados da Rede de Pesquisadores em Segurança Alimentar.

Aproveito para lembrar que está rolando nos últimos dias a 14ª edição do Entretodos - Festival de Filmes Curtos e Direitos Humanos, com filmes produzidos durante a pandemia e que retratam diversas realidades do Brasil e outros 27 países. O festival está sendo exibido nas plataformas e na Spcineplay. O festival recebeu mais de duas mil obras cinematográficas de até 25 minutos, com destaque para filmes que trazem à tona questões ligadas à pandemia, como: precarização do trabalho, movimentos de migração e êxodos, luto e morte, resiliência dos povos e dos afetos, entre outros.

Imaginar só se o tema da desigualdade social e todas as coisas que lhe atravessam não seria tema central em meses de pandemia e aumento da fome e desespero pela sobrevivência... Claro que seria. Mas seria também sem pandemia, afinal, o mundo, em especial o Brasil, segue desmoronando em um abismo. Mas aí no festival vieram à tona, de forma incontornável, questões ligadas à precarização do trabalho, à volta dos trabalhos manuais ligados aos lugares de origem, aos movimentos de migração e êxodos, aos sentimentos contraditórios e dilacerantes em que a presença ostensiva da morte nos submerge, à resiliência dos povos e dos afetos, aos animais descartados como destroços pelos sistemas globais, ao isolamento distópico, ao indivíduo vendo-se socialmente comprometido ou totalmente virtualizado, à negritude, às metamorfoses e suas estéticas, aos lutos e às lutas. No âmbito íntimo e coletivo, o tempo se plasma em vivências não-lineares, digitais, correrias, sonhos, insônias, e os nossos corpos revelam-se, cotidianamente, políticos.

Quem sabe na próxima edição o jantar dos homens brancos ricos vire um curta, porque aquele encontro nos escancara quem ri dos brasileiros em qualquer ocasião. Registrar amplia o debate sobre direitos humanos, registrar nos ajuda a marcar a memória dos tempos e nos aponta as mudanças que precisamos forçar para existir.