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Mariana Belmont

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quem inventou a fome são os que comem

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Mariana Belmont

25/02/2021 04h00

Esses dias me lembrei de uma propaganda eleitoral que passava em 2002, era a tal da Regina Duarte defendendo um candidato por meio daquela famosa frase: "Estou com medo". O medo era do Lula (PT), que foi eleito.

Eu tinha 14 anos. Em casa nunca soubemos explicar o que significava aquele medo. Corta para 2021.

Depois de dois anos e três meses de governo de Jair Bolsonaro, o que mais temos é medo. O cenário é de abandono, descaso e confusão. As pessoas morrem de dengue, de covid-19, de enchentes, de tristeza e de fome. De algum jeito há de se morrer nesse país, e se a terra fosse mesmo plana, como dizem os negacionistas, estaríamos todos em carreatas rumo ao final do mundo, naquele barranco.

#PrecisamosFalarSobreAFome

Ainda criança, era Natal, meu padrinho, sem dinheiro para grandes ceias, matou um bode no fundo do quintal, me lembro do cheiro forte. Logo depois, foi a vez da galinha, ensopada com batatas na pressão. Até hoje se mata galinha lá em casa, e até hoje meu padrinho fala que quem cria comida em casa, nunca passa fome. Em partes, ele tem razão. E é realmente um pouco verdade.

Mas como explicar que existem pessoas com fome? A escritora Carolina Maria de Jesus, em "Quarto de Despejo": "Quem inventou a fome são os que comem".

Em julho do ano passado, o presidente disse publicamente que passar fome no Brasil era uma grande mentira. "Você não vê gente aí pelas ruas com um físico esquelético como a gente vê em outros países pelo mundo", afirmou. Foi justamente quando pesquisadores aguardavam a divulgação da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE.

Fui atrás de pessoas, de amigos, da minha família, de especialistas para ouvi-los sobre a fome. Queria entender a definição da fome, afinal, o que é a fome? Falei com José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, que é doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP), professor visitante do Instituto de Saúde e Sociedade da Unifesp e representante da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB-SP) no Conselho Municipal de Segurança Alimentar (Comusan):

"A fome - aquela socialmente reconhecida, no sentido de perguntar para as pessoas que experimentam e vivenciam a fome, como elas definem a fome - poderia ser definida como um conjunto de manifestações físicas e psíquicas provocadas pela privação de alimentos. Sensações físicas como dor no estômago, fraqueza e tontura, e, em termos de sensações psíquicas, o medo, o estresse, a depressão e a apatia são algumas das sensações da privação de alimento", definiu o geógrafo.

Ele conta que é importante olhar para a fome como um processo. "Um processo no qual a privação de alimentos pode ser cada vez maior e contínua, gerando sensações físicas e psíquicas mais graves. Nas pesquisas, a pessoas entrevistadas definem (e apresentam) a existência e o nível da fome, por meio de marcadores: comer sempre o mesmo tipo de alimento, comer só arroz por exemplo, o que está acontecendo muito na pandemia; diminuir o tamanho das refeições, terminar de comer sem estar satisfeito; pular refeições (mais grave); e passar longos períodos sem comer".

Falei também com amigos, fiquei tentando entender quem perto de mim já passou fome ou já percebeu a falta que o alimento faz. A pergunta que circulei foi: quando vocês sabem que alguém está passando fome, ou vocês mesmos já passaram por isso, o que vocês pensam, o que vocês sentem?

"Mana, chegamos a passar fome em Osasco, e é uma das piores sensações que já tive na vida. Uma sensação que nunca mais quero sentir. Era a fome em si como fato e o sofrimento da minha mãe, que criou dois filhos, por estarmos naquela situação", me contou meu amigo Márcio Black, que é coordenador de democracia e cidadania ativa na Fundação Tide Setubal.

A ideia é dar dimensão com palavras, é desenhar o sentimento da falta que percorre o espaço corporal, mas também emocional e, porque não, espiritual. A ideia é que você no seu apartamento confortável tente fechar os olhos e perceber que a urgência agora é pela sobrevivência. Por isso, precisamos do retorno imediato do auxílio emergencial.

Vou reproduzir aqui outras respostas, mas não vou identificar as pessoas, não precisa. Mas por favor, leiam:

"Penso que a maior parte das pessoas que passam fome são pessoas negras, e que a fome está atravessada pelo racismo."

"Ficar sem comer absolutamente nada, por alguns dias, bagunça tudo na gente. Olha, parece droga, os pensamentos não fluem, não andam. A cabeça dói, você não consegue mais organizar as coisas, nem pra sair do lugar. Não desejo a ninguém. É uma experiência desumana."

"Profunda desesperança na humanidade e sentimento de responsabilidade, ou melhor, culpa, pela pessoa estar passando por isso."

"Eu sentia uma profunda falta de perspectiva. Era como se não fizesse sentido ter esperança ou botar energia nas ideias ou nos projetos. A comida não enche só a barriga, ela é um ritual pra gente saber que passou pelo dia. Daí todo dia era igual pra mim. Eu sentia que aos poucos estava deixando de existir. É muito doloroso."

"Uma sensação de impotência muito grande, por um direito tão básico como o de se alimentar e ser negligenciado."

Lembrei de Tula Pilar, que saudade dela. Tula era uma escritora, que perdemos em 2019. No livro organizado por Bianca Santana, "Inovação ancestral de mulheres negras: táticas e políticas do cotidiano", publicado pela Editora Oralituras, encontramos um texto de Tula chamado "Frango verde: alimentando-me do lixo". Trata-se de um depoimento sobre a sua trajetória como menina pobre, das favelas de Belo Horizonte, o trabalho na infância, a vinda para São Paulo, os três filhos, o ofício de catadora de materiais recicláveis, até se tornar escritora e o desejo de viver da venda de seus livros. Pilar conta sobre as dificuldades da vida. Ela relata os perrengues como se voltasse a ser criança, achando graça de comer um frango que a tia retirou do lixo, mas cujo saboroso tempero, ela guardou na lembrança pelo resto da vida.