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Mariana Belmont

Precisamos estar prontos para novos futuros e nos mantermos vivos

10/04/2020 04h00

Atrasada como sempre, trabalhando como nunca, meus amigos.

Há dias tentando dar conta da vida, do mundo e de tudo ao mesmo tempo. Dentro de casa por 24 dias, tempo demais pra quem gosta de percorrer a cidade, quem gosta de ver a cidade pela janela do ônibus. E transitar pelas diferenças constantes que São Paulo entrega, queria poder visitar a família e amigos na Colônia, queria poder trabalhar todos os dias na Galeria Metrópole. Andar pelas calçadas e chegar nos lugares que preciso estar. Visitar meus amigos no Centro de Mídia, no Jardim Ângela, colar no Pagode da 27 e no Pagode na Disciplina, e usar meus domingos sendo feliz e com os meus.

De casa eu monitoro minha tia Cássia, meu afilhado João Gabriel, meu padrinho Francisco e meus amigos, pelo celular. Tenho a honra de hoje colaborar com a Uneafro Brasil, que segue trabalhando sem descanso tentamos minimizar o impacto na vida dos nossos e de quem não conhecemos, mas que estão nas mais diversas periferias do país. Milhares de famílias negras e pobres de periferias e favelas não tem condições de comprar alimentos e produtos de higiene como sabonetes, sabão líquido, detergentes e álcool gel. Muitas comunidades sofrem com a falta d'água e de saneamento básico no país.

Ainda é possível ter o privilégio de ser parte da Rede Jornalistas das Periferias, que é a nossa utopia que deu certo e a construção política que tenho orgulho de fazer parte. É o lugar que me deu amigos e segurança de fazer exatamente o que precisa ser feito. É uma construção bonita demais de conteúdo e comunicação feita a partir de onde a gente nasceu, com nosso olhar. Em tempos difíceis, construir isso com amigos e grandes profissionais de comunicação têm sido excelente, fazer jornalismo na periferia é resistência e resiliência.

Pagode na Disciplina entrega por dia 200 marmitas no Jardim Miriam e no Grajaú, já o Pagode da 27 se junta para arrecadar alimento e distribuir no bairro, as duas comunidades de samba ficam na zona sul de São Paulo, e reúnem milhares de pessoas aos domingos para juntos cantar samba e confraternizar entre amigos e família. O Vinicius, frequentador e amigo lá da 27, usa a criatividade e a necessidade do momento para preparar deliciosos caldos e ainda entrega pelo bairro, o corre está louco para poder segurar a onda da sobrevivência. A política pública das rodas de samba nas periferias funcionando como nunca.

A cidade está se movimentando e criando outras dinâmicas de sobrevivência, ficar em casa nem sempre é uma opção, mas se for fique em casa. Um dia de cada vez e forçadamente aprendendo a importância ambiental para que relações, economia, cultura e todas as dinâmicas e necessidades sociais não entrem em colapso. Cidades são lugares de encontro, de boas oportunidades e que abrigam desigualdades sociais. E como será daqui a pouco?

É cada uma, universo, tá difícil.

A gente vai passar por isso, vai demorar um bocado ainda, mas vamos passar por isso. Venho pensando sobre a cidade que teremos tempo para sonhar. Voltaremos a viver descontroladamente? Li essa semana a entrevista do sempre necessário Ailton Krenak e ele diz: "Tomara que não voltemos à normalidade, pois se voltarmos é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira. Se essa tragédia serve para alguma coisa, é nos mostrar quem nós somos. Estamos em suspensão. Vamos ver o que vai acontecer".

Eu proponho que a gente não pare de resistir, mas tire tempo para sonhar territórios e formas possíveis para sonhar. Proponho que a gente olhe de verdade para as histórias sobre quem veio antes de nós e que olhe com respeito pelos povos e comunidades tradicionais. Que a gente enxergue a natureza como parte do todo, e que ela abre os caminhos para respirarmos melhor, comermos melhor.

Olhar generoso para o tempo

Os acadêmicos, os debatedores de botequim no centro e os intelectuais de óculos lidam com as questões do cenário de contínuo crescimento e urbanização da cidade e apagam as periferias do croqui. Mastigam para depois vomitar vários preconceitos e julgamentos de quem nunca pegou trem lotado. Hoje não tem botequim pra sentar e quem se organiza para sobreviver é a periferia.

Quero dizer que precisamos sonhar com os livros que os nossos escrevem, sonhar com os sonhos que não estacionam, eles continuam vibrando aqui dentro. Utopia da cidade possível para todo mundo e planejada pela maioria da população.

No meu último texto aqui tive a coragem de falar sobre nossos mortos, falei mal do atual governo e jamais vou retirar qualquer posição. De onde eu venho a gente tem palavra e opinião. Hoje eu tenho medo, raiva, pouca alegria, angústia, ansiedade, nojo do presidente e da sua família miliciana, e não tenho nenhum problema em continuar escrevendo sobre isso. Isso é sobre quem é possível ser. Os comentários não dizem sobre mim, dizem sobre quem ataca e ofende, um rebanho ensinado a ter ódio e sentimentos que também matam por dentro.

Mas tenho esperança e sonhos para que possamos mudar juntos esse cenário, mesmo passando por muita dor nos próximos tempos, vamos derramar muitas lágrimas e perder muitas pessoas pela ineficiência do Estado. Passaremos por isso, mas juntos.

Digo que precisamos sonhar, ter planos, nos cuidar como for possível e cuidar das pessoas que precisam. Eu não sei vocês, mas dentro de mim se passa muitas emoções e no meu caderno muitos sonhos.

A utopia do título desse texto é capaz de aguçar a curiosidade de qualquer pessoa a qualquer momento, né? A possibilidade de criar nossos mundos possíveis, mesmo que dentro de mim, mesmo que a gente siga acreditando que a forma mais direta de vencer o ódio e a desigualdade é seguir com nosso trabalho diário no chão dos milhares de bairros das cidades, é esclarecedora e me conforta. Me faz acreditar que todo mundo é capaz de ter um mundo só de amor e paz, quando faz só o bem, quando só faz o bem, como diria o grande Arlindo Cruz.

E como o samba é resistência, existência e possibilidade de acreditar e sonhar com nossas favelas, becos, vielas e quebradas melhores, eu vou tomar a liberdade de deixar um samba aí embaixo, ouça, preste atenção na letra. E depois que tudo isso passar a gente possa se abraçar na Rua Manuel Guilherme dos Reis, 500.

"São tantos motivos para lutar, pra sonhar
É resistir pra existir, realizar, é um só querer, um só coração
É minha nação
É o povo na cabeça...."