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Mari Rodrigues

Travesti, do sagrado à chacota

Mari Rodrigues

22/08/2020 04h00

"Uma maneira de desumanizar uma pessoa ou um grupo é negar-lhes a realidade de suas experiências". Com esta frase de Patricia Hill Collins, quero começar minhas reflexões.

Esta frase foi citada num artigo muito interessante que a Victoria Dandara Toth - que escreveu comigo recentemente - me enviou sobre a necessidade de descolonizar as representações que temos de pessoas travestis. Neste artigo, fala-se sobre as comunidades ameríndias, cujas identidades de gênero em muito se diferenciavam das identidades binárias europeias, quais sejam, homem e mulher.

Muito interessante entender que a historiografia que se tem sobre essas comunidades, ainda que fortemente enviesada pela visão eurocêntrica de seus autores, mostra estes seres de gêneros tão díspares da binaridade homem-mulher como pessoas portadoras de cura, de mediação, de paz; em suma, pessoas que eram respeitadas nas comunidades e até mesmo alçadas a um grau de sacralização.

Muito diferente da representação que temos hoje de pessoas travestis: a prostituta, a cafetina, a delinquente... Representações que não nos fazem ver uma "normalidade" nestas pessoas. Quando há uma tendência a esta "normalidade", a reação dos ditos "normais" é a chacota e o estranhamento, externado de formas pouco republicanas.

Tomo como exemplo uma publicação aparentemente inocente: um vídeo que circulou onde uma travesti entrevistava outras travestis que iam a uma festa de outra travesti amiga delas. Nada de mais nesta "coluna social" aparentemente insossa, se virmos apenas o que escrevi. Porém, as reações de riso desnecessário só mostram o papel que a sociedade coloca para as pessoas travestis: o de fazer rir, ainda que involuntariamente.

E isto me incomodou de uma forma que precisei externar. Fui tachada de "militante sem sentido". Fui ofendida por gente que faz coisa pior que eu. Por que é assim que se deve tratar quem quer um mínimo de respeito para quem parece não merecer respeito nenhum na sociedade. Fico me perguntando se um dia pararemos de fazer memes com travestis (memes estes que pouca comicidade têm, e cujo riso se dá apenas pela existência da pessoa).

Espero que lembremos do papel sagrado e de certa forma empoderador que as comunidades ancestrais tinham com quem não era homem nem mulher, na acepção cristã da palavra, e paremos de colocar estes valores que nos foram impostos como únicos e como excludentes de demais valores que não são cristãos, mas também éticos.