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Mara Gama

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Guerra dá gás a lobistas do petróleo e da mineração em terra indígena

Prédio do governo de Kharkiv, na Ucrânia, foi bombardeado por míssil da Rússia - REUTERS/Vyacheslav Madiyevskyy
Prédio do governo de Kharkiv, na Ucrânia, foi bombardeado por míssil da Rússia Imagem: REUTERS/Vyacheslav Madiyevskyy

Colunista do UOL

10/03/2022 06h00

Em vez de acelerar a transição energética global para responder à crise climática, a guerra na Ucrânia pode alavancar um aumento de produção de gás e petróleo nos Estados Unidos, o maior produtor mundial, nas chamadas petro-províncias do Canadá e nos campos do Reino Unido no Mar do Norte. E no Brasil, a invasão da Ucrânia pela Rússia está sendo usada pelo governo para avançar sobre os territórios indígenas, com a desculpa de que é necessário explorar essas terras para fazer fertilizantes. Que hoje são importados da Rússia.

Há estudos que desmentem que haja necessidade de usar esses territórios para produzir fertilizantes no país. Há jazidas fora de reservas em fase de licenciamento para pesquisa e exploração. Mas o presidente brasileiro é explícito em seu intuito destruidor. Bolsonaro disse textualmente que a guerra na Ucrânia trouxe "boa oportunidade" para o Brasil explorar a terra indígena.

Os dois movimentos -- volta de incentivos à produção de petróleo e gás de xisto em várias partes do mundo; e exploração de terras indígenas protegidas, com o desmatamento embutido, aqui no Brasil -- comprometem globalmente o combate ao aquecimento global. Descarbonizar, reflorestar, diminuir consumo e desmate e proteger as florestas existentes é fundamental para frear a crise do clima. E isso é para já.

O presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou na terça (8) veto às importações de petróleo da Rússia. A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, já havia dito que o governo ia incentivar o aumento da produção interna para ter uma "fonte confiável de energia" e os americanos não terem de ser preocupar "com os preços da gasolina subindo pelos caprichos de um ditador estrangeiro", referência óbvia a Putin.

Em artigo no "The Guardian", no último dia 4, o congressista Raul Grijalva, presidente do Comitê de Recursos Naturais da Câmara dos EUA, disse explicitamente que "lobistas do petróleo e gás estão usando a Ucrânia para pressionar por uma perfuração desenfreada de poços" no seu país.

Segundo ele, a indústria de combustíveis fósseis está vendo "oportunidade para transformar a violência" em um "gerador de propaganda de petróleo e gás". Para isso, a indústria reapresenta antigas demandas: afrouxar regulamentações ambientais e conseguir investimentos, livres de restrições impostas pelos planos de descarbonização da economia.

Citando os alertas do último relatório do IPCC, Grijalva diz que aumentar a produção interna de combustíveis fósseis nos EUA não é a saída. "Devemos nos livrar de nossa dependência de petróleo e gás e fazer investimentos transformacionais em tecnologias de energia renovável mais limpa", diz. Essa substituição mataria três coelhos com uma cajadada só: minaria o poder de "déspotas dos combustíveis fósseis" como Putin, estabilizaria os preços da energia nos EUA e criaria um planeta mais seguro e sustentável.

No Canadá, o quarto mais produtor de petróleo do mundo, o lobby dos combustíveis fósseis está aproveitando a guerra para fazer propaganda do que seria um "petróleo ético" canadense como alternativa ao "óleo de conflito" russo no mercado mundial. Internamente, os políticos alinhados a esses interesses defendem abertura de novas frentes de exploração de petróleo e a construção de gasodutos para atender a demanda de gás da Europa.

Em entrevista à "Al Jazeera", a gerente de políticas da Climate Action no Canadá, Caroline Brouillette, disse que o lobby dos combustíveis fósseis em seu país se aproveita da guerra na Ucrânia "para promover sua agenda destrutiva e dobrar a expansão da produção fóssil". E o ministro do Meio Ambiente canadense, Steven Guilbeault, disse que a solução para os problemas globais de energia é reduzir a dependência de petróleo e gás, independentemente de sua procedência.

O primeiro-ministro inglês Boris Johnson já declarou que a produção de petróleo e gás do Reino Unido deve aumentar para reduzir a dependência da Rússia. Segundo o Comitê sobre Mudanças Climáticas do país, porém, esses campos não serviriam para atenuar a crise.

Rebecca Newsom, do Greenpeace do Reino Unido, apontou que os cortes de financiamentos para projetos de energia renovável eternizaram o consumo de gás importado no país: "Nossas casas bebedoras de gás estão financiando a guerra de Putin, prejudicando nossos bolsos à medida que os preços do gás disparam e arruínam o clima", disse em entrevista ao "The Guardian". "É o preço que pagamos por décadas de fracasso do governo em acabar com nossa dependência de combustíveis fósseis. Nossa melhor esperança para um futuro mais seguro, saudável e pacífico é nos afastarmos do petróleo e do gás o mais rápido possível e investir em energia limpa e casas mais quentes", afirmou.

BRASIL

O plenário da Câmara deve votar nesta semana um requerimento que pede a tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei 191/20, que regulamenta o garimpo e a exploração de recursos minerais hídricos e orgânicos em reservas indígenas. Segundo a Agência Câmara de Notícias, a proposta será analisada por um grupo de trabalho de 20 deputados e será incluída na pauta da segunda semana de abril. Se aprovada na Câmara, segue para o Senado.

Nesta quarta (9), artistas, indígenas e movimentos sociais fizeram em Brasília o "ato pela Terra contra o pacote da destruição", que inclui o PL 191/2019. Caetano Veloso, que chamou para o movimento, entregou um documento do grupo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e a ministros do Supremo Tribunal Federal.

A articulação do lobby favorável à exploração das terras indígenas é ampla dentro no governo. O Ministério da Agricultura já anunciou que quer adiantar o lançamento do Plano Nacional de Fertilizantes para este mês. Entre os pontos principais, a desburocratização de toda a cadeia de produção, incluindo processos de licenciamento para exploração de minas, como as de potássio e de fósforo.

EUROPA

Mais dependente dos insumos da Rússia, a Europa anunciou um plano para conquistar independência aparentemente mais sustentável. O plano prevê um aumento das importações de gás natural liquefeito (GNL) de fornecedores não russos e maiores volumes de produção e importações de biometano e hidrogênio renovável.

Vale lembrar que a Rússia é o terceiro maior produtor de petróleo do mundo, atrás dos EUA e da Arábia Saudita, segundo a Agência Internacional de Energia. Em 2021, o petróleo russo somou 34% das importações da OCDE na Europa e o gás russo respondeu por 45% das importações de gás da União Europeia -e quase 40% do consumo total de gás do bloco.

O plano batizado de REPowerEU visa diminuir a demanda da União Europeia por gás russo em dois terços antes do final de 2022. "Quanto mais rápido mudarmos para energias renováveis e hidrogênio, combinados com mais eficiência energética, mais rápido seremos verdadeiramente independentes e dominaremos nosso sistema de energia", disse Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, ao anunciar o plano.