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Mara Gama

REPORTAGEM

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Jardineiras da floresta, antas podem desaparecer da Mata Atlântica

Anta monitorada pelo projeto de preservação do Ipê - Luiz Claudio Marigo
Anta monitorada pelo projeto de preservação do Ipê Imagem: Luiz Claudio Marigo

Colunista do UOL

21/01/2022 06h00

As antas da Mata Atlântica podem desaparecer se não houver um programa que permita a reconexão de grupos dispersos. E a preservação não é importante apenas para a manutenção dessa espécie em si. As antas são ativas indutoras da biodiversidade. São conhecidas como jardineiras da floresta por percorrerem grandes extensões em suas áreas e deixarem rastros de sementes pelo chão, o que renova a mata. A anta se alimenta e deixa sementes já adubadas de brinde. Seu desaparecimento, portanto, prenuncia risco maior para a segurança e o equilíbrio de todo o bioma.

O alerta foi dado em um artigo publicado na revista "Neotropical Biology and Conservation". De acordo com os autores, os pesquisadores Kevin Flesher, do Centro de Estudos da Biodiversidade, Reserva Ecológica Michelin, Bahia, e Patrícia Medici, da Incab (Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira), do projeto do Ipê, as antas ocupam atualmente apenas 1,78% de sua distribuição original na Mata Atlântica, bioma que se espraia em áreas do Brasil, da Argentina e do Paraguai.

Segundo os cientistas, é necessário permitir a conexão entre as 48 populações identificadas para salvar a espécie, pois a maior parte desses grupos são hoje inviáveis do ponto de vista demográfico ou genético. A perda de um único animal tem alto impacto sobre a população, devido ao baixo potencial reprodutivo, com gestação de um filhote após 14 meses e intervalos de até três anos entre nascimentos. Ainda assim, com ações de conservação, a anta brasileira poderia estar amplamente distribuída pelo bioma.

Hoje, os grupos estão praticamente ilhados, com perigos por todos os lados. As antas são capazes de percorrer longas distâncias, de 3 a 9 km/dia, mas a pressão de caça - principal causa do declínio das antas no bioma - e dos atropelamentos em rodovias, restringe as expansões e a conectividade interpopulacional, mesmo quando a distância entre os grupos são pequenos, segundo o pesquisador.

O intenso tráfego da rodovia BR-101, que atravessa a Mata Atlântica brasileira de norte a sul, é uma armadilha mortal para as antas. Atropelamentos também estão entre as principais causas de mortalidade do animal no Parque Estadual Morro do Diabo, no extremo oeste paulista. Os estados de São Paulo e Paraná têm o maior número de populações remanescentes, 14 e 10, respectivamente.

Para cuidar da preservação e monitorar as ameaças às antas, há 25 anos, nasceu a Incab, no Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê), que possui hoje o maior banco de dados sobre a espécie no mundo. A Iniciativa é financiada por instituições nacionais e internacionais. Já recebeu nove prêmios, entre eles o Whitley Gold Award, em 2020, apelidado de Oscar Verde da Conservação.

As pesquisas sobre as populações de antas começaram em 1996, no Parque Estadual Morro do Diabo, e se expandiram para o Pantanal e o Cerrado. No ano passado, tiveram início as investigações na Amazônia. No último ano, a entidade passou a monitorar antas nas áreas urbanas e periurbanas de Campo Grande, e pretende equipar os animais com colares de monitoramento por satélite. Hoje, já há 105 antas monitoradas por telemetria.

A iniciativa busca também influenciar decisões para combater as ameaças e evitar a extinção da anta e de seus habitats. De 2013 a 2020, a Incab monitorou 34 rodovias de Mato Grosso do Sul e federais e registrou mais de 600 mortes de antas nessas vias. A Incab documentou também anomalias físicas nas antas em decorrência do uso de agrotóxicos da agropecuária no Cerrado e produziu um paper sobre o tema.

Pesquisadora Patricia Medici desenvolvendo seu trabalho de pesquisa no Pantanal - João Marcos Rosa - João Marcos Rosa
Pesquisadora Patricia Medici desenvolvendo seu trabalho de pesquisa no Pantanal
Imagem: João Marcos Rosa

A seguir, trechos da entrevista com a pesquisadora Patrícia Medici, líder da Incab e presidente do Tapir Specialist Group (TSG) da International Union for Conservation of Nature (IUCN), do Species Survival Commission (SSC).

Extinção das antas da Mata Atlântica

"Por serem pequenas e desconectadas, a possibilidade de extinção dessas populações é bastante alta. Temos urgência de buscar formas de conectar os grupos, seja através de corredores de movimentação, seja através da eliminação das ameaças que ocorrem entre essas áreas, para que as antas possam cruzar essa paisagem de forma segura. Não podemos deixar que, no momento que estão indo de uma área para a outra, elas sejam caçadas, atropeladas ou contaminadas por agrotóxico. Enfim a paisagem entre as populações de antas precisa se tornar mais amigável."

Como reduzir os atropelamentos e a contaminação por agrotóxico

"A única chance que temos como comunidade acadêmica e científica de salvar esse animal é neutralizar essas ameaças. Quando falamos de atropelamentos, temos de, a partir de agora, buscar formas de licenciar, construir e operar somente rodovias que tenham como parte do projeto medidas mitigatórias. Que são: túneis por baixo da rodovia, passagens por cima, redutores de velocidade, radares de velocidade, cercamento ao longo das vias. Existe uma série de técnicas para solucionar atropelamentos de fauna. O que falta aos gestores dessas rodovias é lançar mão dessas técnicas desde o início de um projeto de um empreendimento, de forma que ele já seja construído incorporando essas medidas em áreas próximas a florestas e a corpos d'água. É muito importante que projetos de novas rodovias já venham imbuídos de técnicas de mitigação de atropelamento. No que diz respeito à contaminação de agrotóxicos, mitigar os danos seria promover incessantemente formas menos destrutivas de produção. Existem já diversos modelos que trabalham com a produção sustentável de soja, de cana, mas o fato é que esses modelos não serão usados na produção em larga escala no Brasil. Quanto à caça, outra ameaça, existem formas de trabalhar a neutralização, através de educação ambiental, de marketing social, uma serie de técnicas para lidar com essa temática com as comunidades ao redor das áreas naturais."

Principais ações da Incab em 2022

"Uma delas é seguir com o trabalho que iniciamos em 2021, com um novo programa na Amazônia, que funciona basicamente nos mesmos moldes do nosso trabalho na Mata Atlântica, no Pantanal e no Cerrado, ou seja, coletando informações científicas para ter clareza do que é prioritário para a conservação desse animal em cada uma dessas áreas. A urgência está em buscar formas de mitigar as diferentes ameaças que impactam a sobrevivência desse animal em todas as áreas. Na Amazônia, estamos falando de mineração, de caça e de agricultura, particularmente no arco sul do desmatamento, áreas nos estados de Mato Grosso e Pará. Temos um leque de ameaças abrangendo áreas protegidas, áreas privadas, agricultura, pecuária, diferentes tamanhos de propriedade.

Como ajudar o projeto de proteção das antas

"No Brasil, poucas pessoas sabem o que é uma anta. Confundem com tamanduá, capivara. Uma grande ajuda para causa da conservação é disseminar informação. As pessoas costumam se importar mais como que elas conhecem, para que possam desenvolver uma empatia, possam se importar. E existe a necessidade de se reconectar com a natureza. Boa parte das pessoas vive nos centros urbanos completamente desconectadas. As crianças estão bastante mais ligadas aos objetos eletrônicos. Eu realmente acredito que uma pessoa desconectada da natureza perde os atributos necessários que fazem dela uma pessoa que tem empatia pelo ambiente. Então, vejo como de suma importância que as pessoas voltem a passear no parque, voltem a visitar um parque público de sua cidade, viajar, passar um tempo na natureza e se recon ectar."