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Mara Gama

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Grito da floresta em pó vira grito da floresta em pé no mural de Mundano

Foto feita pelo artivista Mundano na terça, 19, dia da inauguração do seu mural "O Brigadista da Floresta". - Mundano
Foto feita pelo artivista Mundano na terça, 19, dia da inauguração do seu mural "O Brigadista da Floresta". Imagem: Mundano

Colunista do UOL

21/10/2021 06h00

Na tarde da última terça, 19 de outubro, a equipe de produção se reuniu em frente a uma passarela da rua 25 de março, perto da avenida Prestes Maia, no centro de São Paulo, para a inauguração simbólica do mural "O Brigadista da Floresta", a maior obra do artivista Mundano.

A empena do edifício Sucupira, de 46 metros de altura, exibe a imagem de "O Brigadista da Floresta", herói invisível e solitário do combate às queimadas, com suas roupas e ferramentas de trabalho num cenário desolador de terra arrasada, onde se veem uma ossada de jacaré, árvores cortadas no toco, uma plantação ao fundo. Preto no branco e muitos tons de cinza, com cinzas e restos de verdade.

O brigadista Vinicius "Curva de Vento" estava lá na inauguração. Integrante da Brigada Voluntária de São Jorge, ele foi o modelo usado por Mundano para o mural, que é uma "atualização", segundo o artista, da obra de Cândido Portinari (1903-1962) "O Lavrador de Café", de 1934, numa homenagem também aos 100 anos da Semana de 22, marco do modernismo no Brasil.

A pintura de mil metros quadrados foi feita com cinzas de incêndios florestais e queimadas recolhidas numa expedição nos meses de junho e julho deste ano, que percorreu mais de 10 mil quilômetros.

A viagem fez paradas estratégicas em cinco cidades de quatro biomas do país: Poconé, no Pantanal, Mato Grosso; Colíder, na Amazônia, em Mato Grosso na divisa com Pará; São Jorge, na Chapada dos Veadeiros, no Cerrado; Alto Paraíso de Goiás, também no Cerrado, e Amparo, na Mata Atlântica, estado de São Paulo.

Como Mundano mesmo definiu, seu mural transforma "um grito da floresta em pó num grito da floresta em pé".

"No ano passado, as queimadas atingiram um nível absurdo e as pessoas estavam normalizando a situação. O Pantanal queimar mais de 30%? Ah, tudo bem", diz o artista. "Pensei então em fazer uma obra sobre isso e usar a técnica mais antiga da humanidade, que é o desenho com carvão. Homens e mulheres já pintavam com essa técnica há mais de 20 mil anos".

A caça ao fogo e à fumaça conduziu a expedição. "Fomos acompanhando o fogo pelo satélite do INPE, seguindo as brigadas e coletando amostras de diferentes quantidades e qualidades", diz.

O brigadista Vinícius Curva de Vento, modelo de Mundano para a criação do mural, posa próximo à obra, que foi inaugurada no último dia 19 de outubro. - Chop 'em Down - Chop 'em Down
O brigadista Vinícius Curva de Vento, modelo de Mundano para a criação do mural, posa próximo à obra, que foi inaugurada no último dia 19 de outubro.
Imagem: Chop 'em Down

Depois da coleta, para chegar às tintas, Mundano peneirou as cinzas e bolou um esquema de tonalidades como uma grande aquarela, com graus de diluição variados para contornos e cheios, e a posterior aplicação de um verniz solúvel em água.

"Não tenho noção de quanto tempo ela pode durar. Mas toda obra tem desgaste, é efêmera. A lama de Brumadinho está intacta ainda. Acredito que as cinzas ficarão ainda um bom tempo repercutindo esse grito", diz o artista.

Ele se refere à lama tóxica do desastre ecológico de Brumadinho que usou para pintar uma versão de "Os Operários", de Tarsila do Amaral (1886-1973), na obra "Operários de Brumadinho". O mural fica na empena do edifício Minerasil, também no centro, e foi finalizado em fevereiro de 2020.

"A ideia da releitura é atualização. Os operários da Tarsila continuam ali, abaixo do capital, com seus olhares cansados, na sua diversidade", diz.

Depois de revisitar as obras de seus pintores "favoritos", Mundano escolheu o quadro de Portinari para tratar da devastação causada pelos incêndios. "Sou apaixonado pelo trabalho de Portinari e desse pioneirismo dele de retratar os trabalhadores invisíveis, saindo da pintura mais elitista da época. 'O Lavrador de Café' é uma das umas das poucas do modernismo que tem essa paisagem, e tem a imagem de uma árvore decepada, que é muito forte, e se conecta com o que é o agronegócio hoje, esse vilão", diz o artivista.

O aspecto político da arte, segundo Mundano, é mais necessário hoje. "Com os desafios globais e locais que a gente tem da nossa própria sobrevivência como espécie humana, não faz sentido não pintar esses temas", afirma.

"E aí faço homenagem a todas e todos os brigadistas que fazem um trabalho essencial, não valorizado, no combate às queimadas e que poupam aí milhares e milhares de hectares, de modo voluntário, heroico e sem reconhecimento", afirma.

Dar visibilidade ao que fazem esses "heróis" invisíveis é ideia presente em vários trabalhos de Mundano, desde o Pimp My Carroça, iniciativa com os catadores de recicláveis que começou em maio de 2007 com a pintura de carroças com grafites.

"A gente precisa de todas as ferramentas e ações para poder dar conta dos desafios atuais. Hoje a gente vê na COP 26, nas cúpulas do clima, líderes globais num discurso bonito, mas eu gosto de ação, de aplaudir quem está fazendo impacto positivo, como os catadores de materiais recicláveis e os brigadistas. Eles não estão falando. Eles estão fazendo, combatendo, reflorestando", comenta.

"O artivismo é um novo modernismo que a gente precisa criar para gerar as repercussões, mexer com as pessoas. Fico contente que conhecendo o mural as pessoas conheçam o trabalho dos brigadistas, fiquem sabendo mais das queimadas", afirma.

O projeto não termina no mural. A expedição e a pintura estarão no documentário "Cinzas da Floresta", do diretor André D'Elia, em processo de captação de recursos. Aqui um teaser.

Além disso, Mundano quer inspirar outros artistas e ajudar na mobilização pelas brigadas de combate ao fogo no país. O projeto é apoiado pelo Greenpeace.

"Não conseguiria fazer a pintura sem a ajuda de uma equipe com outros artistas como Quinho, Andre Firmiano, Iskor, Loss, Ata e Everaldo Costa, além de bombeiros, equipe de produção. E espero que o projeto incentive outros artistas a criar e pintar com cinzas em outras cidades. O fogo é cíclico."