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Lia Assumpção

O lado direito do cérebro

Aprendi com uma amiga deficiente que o problema do preconceito é que as pessoas não se aproximam; partem de estereótipos para manter uma certa distância. Ela diz que em todos os lugares que vai, como a uma loja, por exemplo, os atendentes nunca se dirigem a ela, mas à quem está com ela. O fato de ela andar numa cadeira de rodas faz com que ela seja automaticamente classificada como "deficiente", sem que a sua interlocutora se dê ao trabalho de perguntar que tipo de deficiência ela tem. Sua queixa está no fato de essa ser uma classificação ampla, que não diz necessariamente o que ela é ou não é capaz de fazer. E isso a limita a ser somente uma deficiente, quando na verdade a Lilai é das pessoas de humor mais afiado que conheço. Ela tem uma deficiência visual e motora, de resto, tudo funciona normalmente.

Isso me lembra uma aula de desenho que fiz num passado distante para entrar na faculdade. O professor dizia que quando vamos desenhar alguma coisa, devemos olhar com atenção pra ela, sem pensar no que é. Quando falamos a palavra "mesa", sua mente já logo acessa uma imagem preconcebida desse objeto. Então, para driblar a mente, o comando é ignorar essa mesa que se forma automaticamente e olhar para este objeto como se ele fosse "novo". Desenhar os vazios da mesa, ou seja, a forma que faz entre a parte interna dos pés e o chão, por exemplo, é uma maneira de fazer isso; se você for desenhando todos esses espaços sem pensar o que eles são, uma hora, magicamente, surge uma mesa. E isso é o que ele chamava de usar o lado direito do cérebro.

Veja que no primeiro parágrafo usei a palavra preconceito. No segundo, usei preconcebido. As duas trazem uma ideia prévia de algo que se apresenta a você: uma pessoa no primeiro parágrafo, um objeto no segundo. Ambas trazem a ideia de um olhar que na verdade não vê.

Outro dia escrevi aqui sobre o perigo da história única. Uma outra parte que gosto dessa ideia é justamente essa que se relaciona com preconceito ou ideias preconcebidas. A história única é você olhar para algo de apenas uma maneira, sem considerar que ela pode ser olhada de diversas maneiras.

Minha amiga Flávia me apresentou uma expressão maravilhosa que não conhecia: educação seletiva. A expressão veio complementando o compartilhamento de um texto na rede social do estilista Marc Jacobs, que teve sua loja depredada durante as manifestações contra o racismo que estavam — e seguem — acontecendo nos Estados Unidos em decorrência do assassinato de George Floyd (e o racismo entra na caixinha dos preconceitos). Ao procurar o texto para escrever por aqui descobri que ele circula já faz um tempo aí nesse mundão "internético", e numa tradução livre diz o seguinte:

Nunca deixe que te convençam que vidro quebrado
ou destruição de propriedade é violência
Fome é violência
Pessoas sem casa é violência
Guerra é violência
Jogar bombas nas pessoas é violência
Racismo é violência
Supremacia branca é violência
Ausência de garantias à sistemas de saúde é violência
Pobreza é violência
Contaminação de fontes de água para exploração privada é violência
Propriedades podem ser repostas, vidas humanas não.

Educação seletiva é violência era seu complemento.

Pra mim, educação seletiva é contar uma história única, é olhar para tudo com ideias preconcebidas, seguindo um modelo já existente, sem nem pensar de onde vem esses modelos ou como foram concebidos. É ser convencido a seguir sem fazer perguntas, sem olhar espaços vazios, como no desenho. É ser convencido a não se aproximar, como diz minha amiga Lilai. A história única também é violenta, pois deixa uma porção de pessoas e de narrativas de fora.

É preciso não se deixar convencer de que há apenas uma história. É preciso olhar para a mesa sem pensar na mesa, olhar para a Lilai e não só para a cadeira de rodas em que ela circula.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do publicado, o texto referia-se ao lado direito do cérebro, não esquerdo. A informação foi corrigida.