Julián Fuks

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Opinião

Elogio da incompreensão em literatura e arte -- e do Nobel a Krasznahorkai

Quanto tempo levaria o leitor para abandonar este texto se o sentido lhe parecesse esquivo, indeterminado? Se a segunda frase já turvasse a proposta da primeira, lançando uma palavra fora de hora, obscuridade, uma palavra improvável, obnubilação, alguma metáfora insensata como um espelho na escuridão, que já não reflete nada? Aposto que a esta altura perdi uns tantos, mesmo num texto que procura guardar coerência e alcançar um significado, um texto que se constrói em torno de uma ideia única, clara, estável.

O caso é que nossa sensibilidade tem sido avessa ao desnorteio e à incompreensão. Estamos imersos numa cultura que rejeita de modo cada vez mais sumário a complexidade, a ambiguidade, o excesso, a pluralidade, a desordem, o caos. Não é difícil observar como a arte e a literatura têm se adequado a um regime mais simples, mais palatável ao público, mais eficaz como produto, um regime em que o estranhamento e a dissonância encontram pouco lugar. Um sujeito do passado que viajasse no tempo, um século até nós, decerto se espantaria com a maior parcela da arte que se cria hoje, não por sua novidade ou sua extravagância, mas por esse inegável retorno à ordem.

Talvez tudo isso tenha a ver com o desaparecimento do barroco, com a maneira como se reprime a expressão do que poderíamos chamar barroco na cultura contemporânea — espere, leitor, não vá ainda, vou explicar melhor o sentido que proponho. Foi num artigo do historiador Martin Jay que li pela primeira vez essa interpretação: o barroco não seria um estilo de época tal como o aprendemos, a forma rebuscada que adquiriu a arte até meados do século 18, na produção de quadros detalhados e igrejas vistosas. Não, o barroco deve ser entendido como algo maior e mais duradouro, uma força subversiva da cultura a contrariar o apelo da transparência e da ordem, com um gosto pelo estranho, o peculiar, o ilegível, o indecifrável, o opaco.

Para Jay, não há uma sucessão de estilos, e sim uma oscilação constante entre um e outro. Há sobretudo um regime estético tido por dominante, um modelo visual fundado em princípios clássicos que enxerga a arte como racional, retilínea, uniforme. Nele os quadros se fazem janelas transparentes para um olhar imóvel, sem nenhum corpo; nele as obras literárias se fazem narrativas lineares, e a linguagem desaparece para não atrapalhar a história. Contra isso, contra essa arte comportada, conservadora, se insurge o barroco, trocando o linear pelo múltiplo, celebrando o deslumbrante, o extático, o desorientador. À eficácia da arte que procura o belo ele prefere a busca do sublime, a apreensão do inapreensível; prefere assim a falha, a falência do sentido.

Por que passamos do triunfo dessa proposta, na primeira metade do século passado, a este tempo de retorno à racionalidade é algo que pede uma resposta minuciosa que aqui não cabe — e que talvez não seja alcançável de qualquer modo. Questão mais importante é se ainda nos será possível alguma forma de resistência, se ainda poderemos nos ver atraídos pelo complexo, o estranho, o inquietante, se poderemos voltar a aceitar a incompreensão nas obras que lemos e contemplamos. Nos interessa ainda a batalha por assimilar o inassimilável, aceitar que as palavras ressoem e reverberem na página sem se curvar a um significado exato, traduzível em retórica?

Uma boa notícia para os que se querem resistentes deu-se na semana passada, com o prêmio Nobel de Literatura ao húngaro László Krasznahorkai. Basta alguns dias na decifração indecifrável de sua única obra publicada no Brasil, Sátántangó, para perceber que estamos diante de um desses autores que não renunciam à vastidão das palavras, entendendo-as como irredutíveis aos seus significados. Nos períodos tortuosos desse romancista peculiar, oscilamos ao infinito entre um regime que se insinua racional, ordenado, e um caos das palavras associável à loucura — a ponto de vê-las se fundirem em vocábulos novos, amalgamados, no momento mais extremo da história.

Sátántangó descreve a vida de alguns sujeitos desajustados e abandonados numa aldeia rural húngara, sob os últimos suspiros do regime socialista, na esperança de um salvador improvável, um messias que se revela traiçoeiro e demoníaco, é possível, nada é muito exato. Seu contexto histórico é fundamental, é a própria razão por que o livro adquire um tom desolado e melancólico, e também o que lhe garante pertinência no mundo atual, como uma leitura aguda de falácias políticas autoritárias. Mas ainda assim não é o cerne do que lemos: aqui a literatura não se reduz ao valor temático ou histórico, prestando-se em vez disso a uma exploração psicológica plural e imprecisa, mais transcendente, mais universal.

É um desses livros complexos que torna exasperante e interminável o papel do crítico, um desses livros complexos de que o leitor tem feito questão de fugir. Sua leitura provoca cansaço e desespero, mas para este leitor-escritor provocou também alívio. Então ainda é possível produzir literatura assim, valendo-se do máximo domínio da linguagem para alcançar o que ela tem de indomável, criando sentidos a partir de paradoxos inextrincáveis? Então ainda é possível desafiar o leitor com a perturbação, o estranhamento, o marasmo, desafiá-lo com a incompreensão, confiando que mesmo assim ele alcançará a última palavra?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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